Cruzeiros. Agências dominam o turismo local com vendas a bordo

As viagens por navio recuperam da pandemia, ainda assim, as quebras são superiores a um terço em relação a 2019. Mas há cada vez mais barcos a pernoitar, a iniciar e a terminar a viagem em Lisboa. A despesa média deste turista subiu para 82 euros. Grande agitação à chegada, sobretudo para os grandes operadores. Os pequenos pedem oportunidade para mostrar os seus programas.
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,A chegada de um cruzeiro a Lisboa significa uma grande azáfama no terminal de passageiros. Estão lá as agências de viagens, as empresas de transporte, as excursões, os taxistas, os angariadores individuais, os autocarros - terrestres e anfíbios -, os tuck tuck, os shuttles (vaivém), as bicicletas, os guias turísticos. Começam a chegar bem cedo, logo que o mega navio atraca, duas horas e meia depois todo o rebuliço acaba, com os que não conseguiram clientela a tentar apanhar esses turistas na Baixa de Lisboa.

Foi assim com a recente chegada do Ventura ao Cais de Santa Apolónia. É um grande barco operado pela companhia inglesa P&O Cruises, o maior navio de cruzeiro construído pela Grã-Bretanha. Tem capacidade para 3100 passageiros, distribuídos por 1550 cabines, a maior parte com varanda. Tem 14 andares, oito restaurantes, boutiques, cinco piscinas e três teatros, incluindo o maior teatro num navio britânico.

Chegou a Lisboa com 2600 passageiros, todos britânicos. Cerca de 30 % contratou a bordo os passeios, as excursões e as atividades que irão fazer nesta escala, informa Maureen Harrison, 57 anos. Está há 21 na companhia e é uma das 1000 pessoas que constituem o staff da empresa nesta viagem. "Adoro o meu trabalho, conheço muitas cidades, há muita diversidade e acaba por ser divertido. Gosto muito de Lisboa, sobretudo porque o centro fica perto do porto e podemos explorar a cidade a pé", explica. Mesmo reconhecendo que as chegadas "são bastante movimentadas" com muita agitação. Desta vez, vai aproveitar a paragem para fazer despesa. "É uma boa cidade para comprar lembranças e essas coisas."

O cruzeiro fica uma noite na capital portuguesa, o que também dá margem para os turistas fazerem mais coisas, logo contratarem mais atividades, portanto, gera mais receita. Ainda assim, estes passageiros contratualizaram menos serviços turísticos do que o habitual, que é na ordem dos 50%, observa Maureen.

O Ventura viaja com muitas famílias a bordo e de todas as idades, frequência que também tem a ver com a altura do ano, o período das férias escolares grandes. Zarpou de Southampton, a maior cidade portuária do Reino Unido e onde é a sede da empresa, passou por Santander e Vigo antes de chegar a Lisboa, vai ao Porto e inicia o regresso a Inglaterra, mais propriamente a Southampton. Ao fim de 10 dias de viagem.

Os Jones são uma das famílias que viajam a bordo: sete pessoas e que vai da bisavó, Theresa, 79 anos, ao bisneto, Louis, de cinco meses. Com eles viajam os avós, Kelly, 55, e Richard, 59; também a filha destes, Elyse, 32 anos, o seu marido e o filho mais velho. É a primeira vez que estão em Lisboa, optaram "por andar por aí", "ver o que há para ver", preferem isso a fazerem um passeio organizado. No segundo dia de paragem, pensam ir à praia, elegendo a proximidade do mar como um fator que os levou a optar por uma rota que incluísse Lisboa.

Clientes habituais dos cruzeiros, há anos que optam por viajar desta forma durante as férias. "É muito relaxante, é muito bom ter tudo a bordo, não precisamos de andar à procura do hotel, do restaurante, de diversões, temos muitas opções e é só escolher, é muito relaxante", repetem Kelly, professora, e Richard, engenheiro. A filha também é professora.

A permanência de uma noite de um navio-cruzeiros é uma mais-valia para as cidades de passagem. E o número de companhias que opta por esta modalidade está a aumentar, informa Maria Santos, 50 anos, há mais de 25 na James Rawes, operador turístico, agente portuário e de navegação.

O movimento de chegadas e partidas do Porto de Lisboa indica que vão estar na cidade 24 navios-cruzeiro até ao final do ano e 40 % chegam de manhã e partem no dia seguinte, ao fim da tarde. Setembro e novembro são os próximos meses mais fortes neste tipo de turismo, tal como abril, maio e junho, o que tem a ver com os transatlânticos, que partem e regressam à América, explicam os agentes turísticos. Os norte-americanos estão em terceiro lugar no que diz respeito aos cruzeiros que passam por Lisboa.

Também há cada vez mais operadores a organizar rotas que partem e chegam de Portugal, segundo Francisco Teixeira, administrador da Melair, que representa o Grupo Royal Caribbean. No início deste ano, esperava que estas viagens pudessem regressar aos números de 2019, mas a guerra na Ucrânia impossibilitou que essa meta fosse atingida, apesar de o setor estar em recuperação das limitações de circulação devido à pandemia - a atividade de cruzeiros esteve suspensa entre 14 de março de 2020 e 17 de maio de 2021.

A Administração do Porto de Lisboa (APL) indica 132 escalas de cruzeiros entre janeiro e maio deste ano, o que implicou a passagem pela cidade de 122 mil pessoas. A que se somam mais de 22 mil que aqui embarcaram ou desembarcaram, num total de 143 967 turistas . As nacionalidades principais destes passageiros são britânica, (46,8%), alemã (23,9%) e norte-americana (13 %).

Comparativamente a igual período 2019, há um decréscimo de 35,7% no fluxo de pessoas, totalizando 223 735 passageiros nos primeiros cinco meses do ano passado. Já a nível dos que embarcaram ou desembarcaram em Lisboa não há uma diferença tão grande: foram 27 mil há três anos, mais cinco mil do que este ano (18,5%).

Quem parte ou chega ao país é quem contribui para o aumento das receitas neste segmento, segundo um estudo da APL. Os passageiros de cruzeiro gastam uma média de 82 euros por pessoa. Os que iniciam a viagem em Lisboa desembolsam individualmente 367 euros antes de embarcarem, valor gasto em hotelaria - normalmente, unidades de 4 e 5 estrelas -, restauração e compras. Ficam, em geral, 2,1 noites na capital. Os que estão em trânsito deixam 37 euros por pessoa.
A APL conclui que os números indicam que está a aumentar o poder de compra do turista de cruzeiros. "Atestam que estamos a assistir a uma transformação do perfil da atividade e dos passageiros de cruzeiros, no sentido de uma maior qualificação e valorização."

As atividades preferidas por quem desembarca de um cruzeiro são as atrações turísticas, enquanto quem embarca gasta mais em restaurantes e cafés. Os passageiros que estão em trânsito escolhem visitar a cidade a pé (69%), fazer compras (48%), passar tempo em cafés e restaurantes (47%) e uma pequena percentagem opta por atrações turísticas (8%).

A Baixa/Chiado, Alfama/Castelo/Mouraria, Bairro Alto/Cais do Sodré e Belém são os locais mais visitados em Lisboa e, destes, apenas a zona dos Jerónimos se distância mais da zona portuária: o Cais de Santa Apolónia ou a gare da Rocha Conde de Óbidos .

E é por estas artérias da cidade que os Edwards se "perdem" no dia de chegada do navio-cruzeiro. É a terceira vez que estão em Lisboa e já têm uma noção da cidade, prevendo eles uma deslocação fácil. Desde que consigam entender o mapa e localizar o sítio onde se encontram, a Praça dos Restauradores.

Paul Edwards, 62 anos, reformado, e Sara Edwards, 54, funcionária numa escola, viajam com o filho, Billy, e a namorada, Mo, ambos de 20 anos. Pagaram 2900 euros pelo bilhete de cada um, é a terceira vez na capital. "Nas outras vezes que visitámos Lisboa optámos por apanhar um autocarro turístico, desta vez, estamos por nossa conta. Vamos andando por aí, parando para beber e comer, sem grandes pressas", ilustra o Paul. Têm todas as refeições abordo, mas preferem permanecer o dia na cidade e almoçar nos restaurantes locais, ao fim da tarde regressam ao navio.

O cruzeiro já se tornou um hábito para esta família fazer férias, contam com uns 10 no currículo. "É um hotel com tudo incluído, que não é muito caro e acordamos em sítios diferentes todos os dias", justifica Paul. Acrescenta Sara: "E nós não gostamos de andar de avião".

Quando estão a bordo fazem as atividades juntos, depois do jantar, os mais velhos deitam-se e os mais novos vão à discoteca. Billy e Mo gostam da música que por lá passa, também dos espetáculos, diferentes todas as noites. Fazem estudos superiores nas áreas de música e de teatro, quem sabe se um dia não atuarão naqueles palcos, pelo menos durante um período da sua vida profissional.

A família chegou à Praça dos Restauradores no shuttles, de 20 em 20 minutos até às 17.30, passando a partir desta hora e até às 22.00 para 30 minutos de intervalo.
Transportes e excursões

A empresa de Maria Santos, a James Rawes, é precisamente a que opera os shuttles, o transporte para o centro da cidade, até porque muitos dos clientes têm mobilidade reduzida. É um serviço incluído no bilhete do cruzeiro. A agência está com muito mais dinâmica do que em 2020 e 2021. "Temos bastante movimento, mas não está a 100 %, comparativamente com o período anterior à pandemia", diz.
A principal melhoria dos últimos anos tem a ver com os cruzeiros que pernoitam em Lisboa. "É melhor, porque os passageiros usam mais serviços no país e têm mais oportunidade de conhecer a cidade".

Iniciar e terminar a viagem na capital portuguesa, está a aumentar, mas ainda é pouco expressivo, até porque o mercado português é pequeno: dez milhões de pessoas e poucos potenciais clientes deste tipo de turismo, justifica Maria Santos.
São as companhias de navegação de longo curso, de luxo, que aqui embarcam e desembarcam, com os clientes a viajarem de avião até Lisboa, explica a agente de turismo. É também professora de Transportes na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril, na vertente de Meios Marítimos, a primeira no país a ter esta disciplina.

As excursões do Ventura estão a cargo da Agência Iber Cruises, cujas vendas são feitas a bordo ou online. Idalina Carvalho, 49 anos, e Filipa Pacheco, 38, chefiam as operações no cais. Quase 500 pessoas compram-lhes programas e há que garantir que seguem na viagem pretendida.

"Somos a agência de viagens que organiza os serviços a nível local. Contratamos autocarros, tuk-tuks, jipes, bicicletas, guias turísticos, tudo o que for preciso", informa Idalina.

A lista de serviços contratados desta vez inclui uma excursão a Óbidos, passeios no Rio Tejo no Hippotrip (autocarro/barco), caminhadas por Alfama, visitas de bicicleta, também tuk-tuks e, como é escala overnight (pernoita), jantar num restaurante de fado. Têm ainda organizado uma visita para os tripulantes que, desta vez, irão até Fátima.

Susan, 74 anos, e Colin Keeler, 75, já fizeram oito cruzeiros, ficaram fãs com o primeiro. "Visitamos várias cidades na mesma viagem e, depois, podemos regressar às que mais gostámos para as conhecer melhor", conta Susan, reformada da função pública.

É a segunda vez que estão em Lisboa, a primeira foi para visitar uma amiga e viram pouco da cidade. "Desta vez, estamos dois dias e queremos ver, usufruir, perceber como se organiza", diz Colin, reformado da construção civil. Compraram o tour por Alfama, que se realiza entre as 10.15 e 14.00 horas, 54 euros por pessoa. Como o autocarro que os leva tem ida e volta desde o Cais de Santa Apolónia, regressam ao barco para almoçar. No dia seguinte, estarão por sua conta e pensam almoçar na Baixa, será o dia, também, para comprar souvenirs para a família.

Quem não pertence às agências de viagens têm dificuldade em angariar turistas destes cruzeiros. Condutores de tuk-tuks e de táxis, também os guias turísticos, empresas pequenas, são os primeiros a chegar ao cais, empunhando cartazes a anunciar os serviços que disponibilizam, alguns indicando os preços. Mas os valores são negociados, percebe-se depois. São os primeiros a chegar, também a partir, quando percebem que o seu negócio não está naquelas bandas. Não perdem a esperança de os conquistar em outras paragens pela capital.

Bruno Friande, 45 anos, na industria hoteleira desde sempre, criou há cinco anos a Friends Tours, mas está desanimado. As restrições impostas com a pandemia tem consequências no presente, nomeadamente a compra das excursões quase exclusivamente a bordo. Começou por ser uma medida sanitária, transformou-se numa prática habitual, lamenta. E ele é muito pequeno para competir com os grandes operadores turísticos. Classifica a atual situação de "caldeirada".

"A própria companhia de cruzeiros vende os serviços a bordo. Nós, nem sequer temos um espaço próprio, para poder explicar às pessoas o que temos para oferecer, é preciso haver uma explicação prévia e não temos tempo para isso. Já saem do barco com o bilhete do transporte comprado. Antes da pandemia não era esta a situação. As pessoas escolhiam quando saiam o que queriam fazer", protesta o Bruno.

"Até os tuk-tuk estão já reservados, é a agência de turismo que os contrata, não nos deixa espaço para desenvolvermos a nossa atividade", acrescenta Paola Maia, 40 anos, que trabalha com Bruno há dois anos e meio. Desta vez, até têm uma reserva feita online, mas poderiam ter mais serviços se tivessem outras oportunidades.
Paola e Bruno fazem tempo à conversa com Maria Silva, 48 anos, condutora de um tuk-tuk há um mês. Amplia as críticas: "As agências de viagens dominam o setor, nós nem sequer temos um espaço próprio, andamos literalmente a fugir. porque não temos onde estacionar legalmente."

As dificuldades que sentem diariamente no trabalho não significam que deixem de apostar nestes turistas. "Os cruzeiros são um grande potencial e, se estivessem organizados, poderiam ainda ser melhor. A estrutura está mal organizada, mal divulgada e ainda não recuperámos da pandemia", justifica o Bruno Friande.

ceuneves@dn.pt

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