Cruzeiro Seixas na Sociedade Nacional de Belas Artes
A Sociedade Nacional de Belas Artes é uma instituição portuguesa dedicada desde 1901 à promoção e formação das artes. A sua história confunde-se com a das artes plásticas deste país e confirma-se que é um ex-libris da capital. Frente à magnífica Cinemateca, a sua sede ocupa um nobre edifício dos que ainda restam nessa zona de escritórios, bancos e lojas de luxo que são os quarteirões entre a avenida da Liberdade e a rua Castilho.
Agora está patente uma magnifica exposição de Artur do Cruzeiro Seixas (ACS, 1920-2020), o mais sublime representante da arte surrealista em Portugal, um mestre do Desenho, da tinta da china ou nanquim - bela palavra que designa a sua remota origem - mas também do grafite, do lápis de cores, da aguarela, da têmpera, guache e colagem. Contemplando as suas obras parece que esses são os meios mais adequados, com cores singulares como esse extraordinário verde celadon em Da multiplicação do vácuo (1976) para criar uma analogia ou uma metáfora da realidade. O espectador é entregue à sua liberdade, à ambiguidade, para que faça a sua própria interpretação.
As obras reunidas na exposição, que provêm da Fundação Cupertino de Miranda, aludem simultaneamente a Eros, aos sonhos e ao subconsciente, às qualidades místicas dos objetos. Representam esse "perpétuo turbilhão da poesia" que os surrealistas perseguiam. Há desenhos evocadores de Dalí, há uma pequena instalação "avant la lettre", La littérature à l"estomac, que presta homenagem a esse escritor tão secreto e perfeito que foi Julien Gracq e que era uma tomada de posição contra a "fabricação" dos prémios literários. Outro extraordinário desenho, Homenagem à realidade (1972) faz-nos evocar A Melancolia, de Durer.
Com o seu grande amigo Mário Cesariny, e também com Mário Botas, Paula Rego ou Raul Pérez realizou alguns cadavres exquis, "cadáveres esquisitos", essa experiência de automatismo psíquico inventada por André Breton. Ergueram-se "contra o despotismo da razão", como disse Mário Dionísio, tão distante do surrealismo, e o automatismo criava uma obra inesperada, original, onde a propriedade do autor se diluía subversivamente.
Como tantos portugueses, ACS foi um cosmopolita, viajou muito, passou em Angola muitos anos o que o marcou muito. "África foi o meu Paris...", essa marca africana que imprime carácter e que está gravada no coração, memórias e história de Portugal. Até ao fim da sua vida continuou a explorar, a procurar formas expressivas, demonstrando que para o verdadeiro artista não existe idade de reforma.
A SNBA mostra também um testemunho directo de ACS, em vídeo, e umas vitrinas muito interessantes com os seus cadernos ou diários de fotografias, cartas, recortes, reflexões ("Cuidado! Em Africa a paisagem olha-nos fixamente"). Em toda a sua obra, nas suas notas, respira-se uma ânsia de liberdade.
O surrealismo, com o seu ataque às convenções à esquerda e à direita (criticavam, por exemplo, Pessoa), não afastou ACS da realidade do seu tempo, pelo contrário, "a minha obra, se existe, nada tem a ver com o fantástico; o que desenho ou pinto é a realidade... fantástica é para mim a realidade". Disso são prova, entre outros, os seus desenhos da II Guerra mundial, em que mostra o seu repúdio pelo nazismo, denunciando o terror que espalhou pelo mundo. Recordem-se as primeiras exposições de ACS em Luanda, que escandalizaram "as autoridades disciplinares do funcionalismo público", como mostram estas declarações de um representante dessa corrente: "Na realidade não se trata de uma manifestação artística, mas de uma afrontosa propaganda de uma conduta que seria mais de esconder do que de tentar disseminar na sã juventude de Luanda. Somos da opinião que não deve ser franqueado o acesso a adolescentes, a indígenas, ...". Contra o surrealismo se levantaram, com efeito, "as forças vivas da Medicina, da Advocacia e das Filosofias", como dizia com humor o crítico Virgílio Martinho.
Serve esta ampla exposição, por alusão, para lembrar e honrar o que se denominou Grupo Surrealista de Lisboa, em que se contavam Alexandre O"Neill, António Pedro, António Maria Lisboa, Pedro Oom, poetas e artistas portugueses que sempre lutaram por exercer a liberdade face a tudo. Abriram janelas numa sociedade fechada e pacata pelas quais entrou um ar fresco e construíram uma ponte com a literatura e a arte de França. Eles foram uma ligação necessário, indispensável, na trajetória da arte e literatura do país.
Escritor espanhol residente em Portugal