Crónicas de Umberto Eco que cabiam numa caixinha de fósforos

Na capa está um chapéu como os que Eco usava para cobrir a sua cabeça. Uma homenagem ao intelectual.
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O italiano Umberto Eco, um dos intelectuais italianos e europeus mais interessantes das últimas décadas, morreu este ano, após ter publicado um último romance, Número Zero. Onde parodiava a sociedade pré-internet com a criação de um jornal para dar notícias falsas com intenção de mudar o rumo da política na sociedade. Tivesse ele vivido mais uns meses e teria observado os efeitos da manipulação das notícias que aconteceram na campanha do brexit e nas eleições presidenciais norte-americanas, que alteraram o resultado de ambos os "referendos" através de notícias falsas, obstinadamente repetidas até se tornarem verdades.

No entanto, a sua mente fervilhante não precisaria dos factos para antever o momento em que a sociedade passaria a contar com um novo conceito, o da pós-verdade, pois o seu livro póstumo já elabora em função desse fenómeno. Não é um romance, antes uma coletânea de colunas de opinião no Expresso publicadas entre 2000 e 2015, intituladas Pape Satàn Aleppe - Crónicas de uma sociedade líquida. Trata-se o título de uma citação do Inferno de Dante e o subtítulo de um texto de Bauman e Carlo Bordoni em que se parte deste conceito para definir a ideia de modernidade da sociedade.

A coluna chamava-se La Bustina di Minerva e devia o nome às caixas de fósforos que existiam em Itália, onde no interior existiam dois espaços em branco que Umberto Eco idealizava como tendo a dimensão suficiente para tomar as notas breves para cada uma das suas crónicas: as bustinas. E assim foram sendo impressas quinzenalmente a partir de 1985 várias bustinas na publicação, que o filósofo reuniu por uma última vez após uma seleção entre as que nunca tinham sido publicadas em livro e eliminando as repetições.

O mais interessante é que este volume ainda preparado em vida não foi editado a tempo de o lermos com Eco a viver na sua casa de Milão, mas mantém a vivacidade habitual dos ensaios, se é que neste caso se pode dizer isso de textos breves, a que acostumou o leitor. Por várias razões, diga-se, mas a principal é por ter encontrado nestas bustinas um padrão de fenómenos sociais que desembocaram nesta época da pós-verdade como se tivessem sido escritas com esse propósito. Ou como diz o autor, aparecendo até "com uma regularidade em determinados temas que permaneciam inquietantemente atuais". E isso vê--se logo no modo como orienta a recolha dos temas das bustinas no índice: Os velhos e os jovens, Online, Sobre os telemóveis, Sobre os mass media, Várias formas de racismo, entre outras categorias. Ou seja, os temas que vemos discutidos na atualidade vinham a ser tratados por Umberto Eco há uns bons anos.

Vamos a O telemóvel revisitado, onde se diverte a historiar este aparelho, colocando-o nos anos 90 como sendo "posse de poucas pessoas mas que já tornavam atroz uma viagem de comboio". Eco pergunta: pode-se viver sem telemóvel? Eco responde, indicando o aparelho ideal: "quem leva a sério a sua liberdade pode desfrutar de muitíssimos serviços que o instrumento permite, exceto o do seu uso telefónico." Prossigamos com os mass media, sendo que basta reproduzir uma frase para se perceber o que Eco pensa: "Será possível comprar pacotes de silêncio?" E sobre o Online? Exemplos: "o princípio da desconfiança está já implícito para quem quer que se defronte com a experiência de um chat, desconfiar das moradas de e-mail, ou quanto mais uma tecnologia é sofisticada mais se presta ao atentado." Por último a questão da luta entre jovens e idosos: "Se os jovens não encontram trabalho, a primeira solução mais óbvia é começarem a redigir listas de extermínio dos anciãos."

Até que ponto os leitores desejam confrontar-se com as grandes questões da atualidade de umas bustinas já com alguns anos? A pergunta só deve ter resposta após uma leitura atenta deste último livro de Umberto Eco. E pode ser em 2017, pois não perderá a atualidade.

Título: Pape Satàn Aleppe

Autor: Umberto Eco

Editora: Ed. Relógio D"Água

396 páginas

PVP: 20 euros

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