Crónica de um santo guerreiro

Os franceses têm Joana d’Arc, os russos Alexandre Nevsky, os espanhóis o basco Inácio de Loyola. Guerreiros em vida, tornaram-se santos, mesmo se sobre eles paira a mácula de terem matado. Portugal não fica atrás: a partir de amanhã, Nuno Álvares Pereira, o célebre Condestável, sobe finalmente aos altares das igrejas como S. Nuno de Santa Maria, culminando um longo e complexo processo.
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FERNANDO PESSOA escrevia que «Deus quer, o homem sonha e a obra nasce». Aplicado a Nuno Álvares Pereira, que amanhã subirá aos altares da Igreja Católica, deve então dizer-se que, se esta canonização obedece a um desejo de Deus, não terá bastado aos portugueses sonhar com os milagres do Santo Condestável para que a «obra» logo fosse reconhecida pelo Vaticano.

É certo que a «obra» nasceu – e Portugal terá o seu sexto santo desde a fundação em 1143 –, mas demorou 578 anos, apelos de pelo menos três reis e de um presidente do Conselho. E foi preciso ainda um pingo de óleo fervente, um olho miraculosamente curado de uma cozinheira devota e o auxílio do prefeito emérito da Congregação para as Causas dos Santos, por sinal o português cardeal D. José Saraiva Martins.

SANTOS GUERREIROS não são raros na cristandade. Desde logo os míticos Santiago – que de apóstolo de Jesus se viu transformado em Mata-Mouros, mentor da Reconquista Cristã da Península Ibérica, com aparições em várias batalhas – e São Jorge, oficial romano martirizado no início do século IV, convertido pelo imaginário popular em matador de dragões e padroeiro do exército inglês. Mais concreto foi Alexandre Nevsky, morto em 1263, santo da Igreja Ortodoxa, o chefe militar que salvou a Rússia da invasão dos cavaleiros teutónicos, em meados do século XIII. Herói nacional, o seu nome e exemplo foram usados por Estaline no apelo à «Grande Guerra Patriótica» contra a invasão nazi em 1941.

Outra santa guerreira é Joana d’Arc (1412-1431), heroína nacional de França. Durante a Guerra dos Cem Anos, alegando inspiração divina, convenceu o rei Carlos VII a confiar-lhe a chefia do exército francês contra os ingleses e seus aliados borguinhões. Rompeu o cerco de Orleães (1429) e ganhou várias batalhas até ser capturada. Foi condenada por heresia e queimada viva em Ruão, em 1431 – o mesmo ano em que morreu Nuno Álvares.

E há ainda Santo Inácio de Loyola (1491-1556), militar ferido na batalha de Pamplona contra os franceses em 1521. Quando fundou a Companhia de Jesus, imitou o modelo da organização militar na hierarquia e disciplina, acentuada pelo quarto voto – a obediência ao papa –, além dos três votos habituais das ordens religiosas (pobreza, castidade e obediência).

OLHANDO O PERCURSO de vida de Nuno Álvares Pereira – incluindo a recriação dos seus feitos –, o desfecho só poderia ser a canonização. Aliás, ele até já morreu santo, pelo menos para o povo português. Enterrado nos primeiros dias de Abril de 1431, logo multidões se juntaram ao pé da sepultura para daí retirarem terra, de supostos poderes miraculosos.

A razão para esta fama imediata era simples e prosaica: o obreiro da independência face a Castela, no decurso da crise sucessória de 1383, renegara os seus títulos e fortuna – que era enorme, por via de deter os títulos e senhorios de 31 vilas e cidades e as rendas de seis dezenas de lugares do reino –, fizera-se donato (leigo com hábito de frade, mas sem esse título), oito anos antes de morrer, e distribuiu parte da sua vasta riqueza pelos pobres. E o povo pagou esses anos de dádivas com o epíteto de santo.

Em todo o caso, indesmentível é o facto de Nuno Álvares Pereira sempre ter tido uma profunda postura religiosa – o que, convenhamos, era comum em gentes guerreiras naquela época. Por regra, as vitórias militares eram sempre acompanhadas, antes e depois, por invocações divinas. São Jorge – que a mitologia transformara num santo guerreiro – era o seu «orientador» e a Virgem Maria a sua «protectora».

Para dar graças pelas campanhas vitoriosas, o Condestável haveria de mandar construir, para além do Convento do Carmo, a Capela de São Jorge em Aljubarrota e pelo menos mais uma dezena de igrejas em honra de Nossa Senhora. E foi também sua a ideia de construir o Mosteiro da Batalha.

Por todas estas razões, o rei D. Duarte terá tentado, poucos anos depois da morte do Condestável, a canonização, mas sem grande sucesso junto de Roma. No entanto, em meados do século XVI, a Ordem dos Carmelitas passou, por moto próprio, a incluir Nuno Álvares Pereira no seu hagiológio, com festividade anual, embora não reconhecido pela Santa Sé.

Apesar disto e da fama popular de santidade, os cronistas daquela época, como Fernão Lopes, quase apenas sublimam a sua faceta guerreira, destacando porém a postura justa com os inimigos, recusando vinganças e a destruição de aldeias e culturas, bem como protegendo mulheres, crianças e pobres.

A sua primeira biografia, elaborada por um anónimo, a mando da Casa de Bragança, publicada em 1525 – com o título Coronica do Condestabre de Purtugal –, é a prova consumada de que a aura de santidade era muito relativizada. Constituída por oitenta capítulos, apenas o último faz referência, em poucas páginas, à vida monacal de Nuno Álvares Pereira.

NA PRIMEIRA metade do século XVII, a imagem de Nuno Álvares Pereira renasce, mas mais num contexto nacionalista. Nessa época, várias obras de evocação ao Condestável são escritas quer em Portugal quer em Espanha – uma delas, em castelhano, pelo poeta Francisco Rodrigues Lobo –, quer por iniciativa dos duques de Bragança quer pelos carmelitas.

Depois da Restauração em 1640, D. João IV – que até atribui ao Santo Condestável 11 ressurreições – e D. Pedro II tentam a canonização, mas Roma, por pressão dos espanhóis, recusa.
Contudo, Portugal nunca esquecerá este assunto. No século XVIII surgem mais obras sobre as virtudes de Nuno Álvares Pereira, com maior ênfase à sua índole mística.

Na Crónica dos Carmelitas – obra incompleta, por dois dos quatro volumes, ainda manuscritos, terem ardido durante o terramoto de 1755 –, registam-se, por sua intercessão, 24 curas de paralíticos, 21 curas de cegos, 21 curas de surdez, 18 curas de doenças internas, 16 curas de doenças fatais e seis aparições com graças espirituais. Roma manteve-se insensível.

No século XIX, a figura de Nuno Álvares Pereira ressurge sobretudo no imaginário colectivo pela via nacionalista. Por exemplo, Guerra Junqueira, no seu poema Pátria – uma crítica assaz à monarquia dos Braganças por causa do ultimato inglês –, coloca Nuno Álvares Pereira como o ideal nacional que nunca cedeu aos estrangeiros. Mas a Igreja também se mexe. Em 1894 são feitas diligências para uma beatificação, sendo o processo aberto por Roma em 1907.

Porém, essa iniciativa não é consensual. Júlio Dantas – já um escritor consagrado, longe de imaginar a diatribe que Almada Negreiros lhe lançaria uma década mais tarde – publicou na Ilustração Portuguesa um libelo em que, prognosticando a canonização do Santo Condestável para 2016, assume o papel de «cardeal diabo». E não se poupa em zurzir o Condestável.

Considerando-o proveniente de «ancestrais bruscos, violentos, desequilibrados e criminosos», Dantas defende ser ele «tão ilegitimamente canonizável como qualquer outro mestre na arte suprema de matar e triunfar». E nem se esquecia de atribuir à «progressiva misantropia» a causa da entrada de Nuno Álvares Pereira no Convento do Carmo, agravada que estaria «pela ruína evidente das suas faculdades mentais» – aliás, patente na sua «pouca barba, tão característica dos degenerados».

ESTA POLÉMICA, porém, não evitou que, em 1918, Roma aceitasse a beatificação, num momento histórico marcado pela Primeira Grande Guerra. O Estado português, em pleno sidonismo, aproveita esta beatificação para reforçar os conceitos de nacionalismo e autoritarismo – que viriam a ser, em certa medida, reaproveitados por Salazar.

Durante o Estado Novo avança-se para a fase seguinte: a canonização. Com Fátima a crescer como fenómeno religioso, chega-se a atribuir um acontecimento premonitório das aparições da Virgem Maria: na véspera da batalha de Aljubarrota, em 13 de Agosto de 1385, as tropas do Condestável terão passado pela Cova da Iria, onde os seus cavalos se ajoelharam voluntariamente.

Já em plena Segunda Guerra Mundial, no ano de 1940, a Igreja portuguesa consegue que Roma abra finalmente um processo formal de canonização mas, apesar de o cardeal Cerejeira ter organizado uma campanha de orações para a obtenção de milagres que pudessem ser atribuídos ao Condestável, o processo arrasta-se nos corredores da Santa Sé.

Até que, nos últimos anos, Bento XVI, mais sensível aos apelos da Igreja portuguesa e à cura milagrosa de um olho salpicado por óleo fervente, toma a decisão de fazer santo aquele que já morrera santo para o povo.



Ossos em desassossego

Atribulada foi a vida, mas não menos calma tem sido a travessia post mortem de Nuno Álvares Pereira desde que, nos primeiros dias de Abril de 1431, desceu à terra do Convento do Carmo. Menos de um século depois, o seu desejo de se manter numa sepultura humilde, em campa rasa, foi desrespeitado pelos próprios carmelitas que, em 1522, trasladaram as ossadas para um mausoléu de alabastro importado da Borgonha, uma oferta da rainha espanhola Joana, a Louca, descendente directa do Santo Condestável.

Nesta operação, alguns ossos foram guardados num relicário da Ordem dos Carmelitas. Duas décadas e meia depois, em 1548, nova trasladação: o mausoléu, que se encontrava na igreja, passa para local mais nobre: o presbitério.

O terramoto de 1 de Novembro de 1755 veio estremecer, de novo, o descanso eterno do Santo Condestável. Destruído o convento, e também o mausoléu, as ossadas são metidas numa caixa de pau-angelim – uma madeira dura quase incorruptível –, que é depositada numa pequena capela dos carmelitas. Mas alguns pedaços de ossos são também distribuídos por vários relicários.

Somente em 1836 se lhe dá um destino mais adequado, quando D. Maria II decidiu construir um túmulo numa capela lateral da Igreja de São Vicente de Fora. Nas décadas seguintes, embora mantendo-se na mesma igreja, o túmulo do Condestável seria mudado de lugar por mais duas vezes: em 1895 passa para a capela particular do Paço Patriarcal e em 1912 é colocado junto ao Panteão da Casa de Bragança.

Num período de nacionalismo exacerbado, em 1918, Sidónio Pais ainda tentou, poucos meses antes de ser assassinado, trasladar os restos mortais do Santo Condestável para o Mosteiro dos Jerónimos, com honras militares, mas essa ideia foi abandonada por ser considerada uma «afronta republicana» e uma «mascarada sacrílega».

Em todo o caso, as ossadas abandonariam a Igreja de São Vicente de Fora nesse mesmo ano, passando para a capela da Ordem Terceira do Carmo. Até que, por fim, em 1951, com a inauguração da Igreja do Santo Condestável, em Campo de Ourique, os restos mortais de Nuno Álvares Pereira são depositados numa urna de mármore preto.

Não pararam aqui, contudo, as suas desventuras post mortem. Em 1961, Salazar e a Igreja Católica decidem organizar um périplo pelo país com as relíquias. No Porto, um relicário contendo pedaços de osso acabaria furtado.



Nove séculos, só seis santos


Nuno Álvares Pereira tornar-se-á amanhã apenas o sexto português a subir aos altares, se considerarmos apenas aqueles que nasceram e viveram parte da sua vida após a fundação do nosso país. Fraco pecúlio de uma nação de existência quase milenar intimamente ligada à Igreja Católica e que chegou a ter, até ao século XVIII, cerca de dez por cento da sua população com funções clericais.

Na pequena lista de canonizados, o primeiro santo português foi São Teotónio, falecido em Coimbra em 1162. Actual padroeiro de Viseu, foi um bispo que auxiliou D. Afonso Henriques no reconhecimento de Portugal como nação pela Igreja, criando ainda o Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra. A sua canonização ocorreria apenas um ano após a sua morte.

Menos tempo ainda levou, depois de falecer, Santo António a ser canonizado, em 1232. Nascido em Lisboa em 1195, Fernando de Bulhões, o segundo santo português, destacar-se-ia como pregador franciscano e granjeou fama além-fronteiras, ao ponto de os italianos, sobretudo em Pádua, o considerarem também seu santo.

No século XVII, em 1690, João Cidade tornar-se-ia o terceiro santo português, sob a designação de São João de Deus. Embora fosse natural de Montemor-o-Novo, partiu aos 10 anos para Espanha e toda a sua acção religiosa e caritativa, sobretudo na assistência a doentes, fez-se naquele país, até à sua morte em Granada no ano de 1550.

Os restantes santos foram já canonizados no século XX. São João de Brito, jesuíta do século XVII, nascido em Lisboa e martirizado na Índia, subiria aos altares pela mão do papa Pio XII em 1947.

E quase três décadas depois, em 1976, seria a vez de Beatriz da Silva, dama da nobreza que viveu no século XV e fundou a Ordem da Imaculada Conceição em Toledo, depois de quase ter sido morta pela ciumenta Isabel de Avis, rainha consorte de Castela e bisneta de Nuno Álvares Pereira.

Neste leque de santos lusitanos não se inclui a Rainha Santa Isabel, mulher de D. Dinis, por na verdade ser aragonesa de nacionalidade. Nem tão-pouco outros canonizados como São Dâmaso (37.° papa), São Vítor de Braga, São Martinho de Dume, Santa Iria de Tomar e São Torcato, por terem vivido antes da fundação de Portugal.

Além destes, ao invés da denominação popular, Santa Joana Princesa (filha do rei D. Afonso V), São Gonçalo de Amarante (dominicano que viveu nos séculos XII e XIII) e São Gonçalo de Lagos (agostiniano que viveu nos séculos XIV e XV) apenas são beatos, tal como os pastorinhos de Fátima, Jacinta e Francisco. E o Infante Santo – D. Fernando, filho de D. João I, feito refém numa batalha no Norte de África – nem esse estatuto possui.



Canonizações


Números exactos não existem, mas serão mais de três mil os santos que, de forma mais ou menos ortodoxa, foram «nascendo» em dois milénios do cristianismo. Cerca de um terço, curiosamente, foi canonizado desde o século XX.

Nos primeiros séculos da era cristã, as canonizações eram procedimentos quase populares, decretadas por bispos sem intervenção do Vaticano. Daí existirem santos que nem se sabe ao certo se existiram. Somente com o Papa Alexandre III, na segunda metade do século XII, há uma tentativa de centralização destas decisões. Porém, só na primeira metade do século XVII, no pontificado de Alexandre III, esse propósito centralista foi alcançado.

A partir dessa altura, as canonizações passam a ser actos muito excepcionais. No século XVII apenas são canonizadas 24 pessoas, no seguinte a lista de santos é aumentada com mais 29 e no século XIX inclui mais oitenta. Nas primeiras décadas do século XX, as canonizações mantêm-se raras.

Mais recentemente, João Paulo II optou por uma postura de quase vulgarização dos santos. Ou seja, a santidade passa, em concepção, por não obrigar uma pessoa a exceder a sua condição humana, como antes era apanágio para se ser canonizado.

Assim, no longo papado de João Paulo II, o Vaticano acabaria por se tornar uma autêntica «fábrica de santos» – como foi chamado num artigo do New York Times. Incluindo as cerca de 1500 beatificações – um passo intermédio para a canonização –, em 26 anos, João Paulo II decretou 482 santos.

O actual papa, Bento XVI, parece estar mais comedido nas canonizações, embora dadivoso nas beatificações. Nos quatro anos de pontificado já instituiu cerca de oito centenas de beatos. Até Outubro de 2009, está prevista a canonização de nove santos, incluindo Nuno Álvares Pereira, que vêm juntar-se aos 28 que já subiram aos altares desde a sua elevação a chefe supremo da Igreja Católica em Abril de 2005.

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