Crónica de El-Rei D. Carlos III
Carlos III é um homem preparado para reinar, mas é um príncipe com passado. Por causa das causas que defendeu, dos discursos que fez, das posições que tomou, das convicções firmes que assumiu em matérias como o ambiente, a sustentabilidade, a construção e os apoios sociais. Foi, portanto, um príncipe com opinião e ação o que, como se sabe, está vedado a Suas Altezas Reais. Ter opinião e, com base nela, agir. Ao contrário do que Isabel II conseguiu fazer durante um reinado de 70 anos, porque não se conhecem posições, opiniões, estados de alma ou embirrações da Rainha.
Depois das muitas, demoradas e simbólicas cerimónias fúnebres, quando o rei-posto começar de facto a reinar, não faltarão ativistas, lobistas, políticos e ambientalistas que farão circular discursos, mais antigos ou mais recentes, mais suaves ou mais incisivos, sobre qual a opinião do novel Rei enquanto ainda se preparava para o ser. Carlos III vai ser confrontado com tudo o que Carlos, Príncipe de Gales, andou a dizer e a fazer.
Carlos III chega ao torno quando, na verdade, estaria quase em idade de abdicar dele, se já fosse Rei. Aos 73 anos, não há no rosto, nos modos, na imagem desgastada por tantas décadas de "espera", não há no novo monarca um sinal de energia, de modernidade, de contemporaneidade, de iniciativa, de refrescamento, de século XXI. Por muito que se esforce, por mais que o seu desempenho acabe por ser impecável, imaculado e constitucionalmente adequado, Carlos III será sempre visto como um rei a prazo, um monarca de transição, terá um reinado de compasso de espera até que William chegue ao trono. Neste hiato em que o "eterno príncipe" se torna Rei pode, no limite, ser o tempo em que se esfuma o que resta do simbolismo do império, em que assistiremos a referendos em várias nações que não querem continuar a ter um chefe de estado sentado em Londres, em que veremos crescer a contestação à monarquia e as ganas de republicanizar o que Isabel II conseguiu manter real. No limite, pode Carlos III vir a ser o último Rei do Reino Unido, da Austrália, do Canadá, na Nova Zelândia, e de outros territórios de outros tempos que não se compadecem com as transformações sociais e políticas que abalam os povos neste século XXI.
Carlos III herda um "império" a esboroar-se, um reino prestes a partir-se, uma Inglaterra fora da União Europeia, um legado quase imaculado de como deve ser um monarca constitucional e uma monarquia constitucional. E será sempre comparado, injustamente, à sua "querida mãe". Ainda assim ele aceita o divino encargo, consciente de tudo isto. "Mais vale ser Rei por um dia, do que Príncipe toda a vida". O ditado popular português parece aplicar-se à letra a um homem que, disseram os enviados-especiais, por estes dias, é "amado pelos mais jovens". Mas a sociedade britânica não é uma sociedade "jovem" e, para a grande maioria dos britânicos com mais de 35 anos, Carlos é o príncipe "mau" que infernizou a vida à sua princesa que era, ela sim, a "princesa do povo". Não é benquisto pelos seus súbditos, que acompanharam a paixão, o divórcio, a vida e a morte de Diana. E, nesta história de conto de fadas, que a televisão e os tabloides ampliaram até uma dimensão universal, que transformou a família Real britânica num dos mais apetecíveis produtos de consumo, Carlos não é propriamente visto com o herói. Poderá vir a ser um monarca tolerado, mas muito dificilmente será um rei amado pelo seu povo, como era a sua mãe.
God save the King. Bem vai precisar.
Jornalista