Crítica da razão impura
Fukuyama tornou-se um VIP da massa cinzenta em 1989, com O Fim da História. Neste livro, o sociólogo americano postulava a rósea noção de que, com o duplo (e simétrico) revés do Fascismo e do Comunismo, o mundo desembocara numa espécie de Éden ideológico, cujo solista era a democracia liberal. Nem Hegel - segundo o qual "tudo o que existe é racional" - professara um optimismo tão seráfico. Mas Fukuyama tinha um álibi: o Zeitgeist de então, protagonizado pela queda do Muro de Berlim, com todo o seu simbolismo verdejante.
Dezoito anos passados, a conversa é outra, como fica claro neste Depois dos Neoconservadores. O autor assume o parentesco com os chamados "neocons". O seu primeiro grande mentor foi Paul Wolfowitz (um dos idealizadores da actual intervenção no Iraque), com quem Fukuyama cooperou já na década de 70, nas negociações com a URSS para o controlo das armas nucleares, na Administração Reagan. Em 1998, com Wolfowitz, Donald Rumsfeld e Dick Cheney, assinou cartas abertas preconizando o derrube de Saddam Hussein.
Hoje, e aqui, Fukuyama diz que a invasão do Iraque foi uma asneira. Disseca a decisão com uma minúcia quase forense, desde a inépcia dos serviços secretos americanos à indiferença para com o contexto local iraquiano, cuja complexidade explosiva descambou numa guerra civil. Assinala, um tanto melodramaticamente, que os efeitos do "desastre mesopotâmico" na política externa dos EUA serão similares àqueles ditados pela derrota no Vietname. E realça, correctamente, que um dos corolários da deposição de Saddam Hussein foi a transformação de Bush, aos olhos de quase todo o planeta, num avatar de Darth Vader. Outra observação penetrante é a de que, também paradoxalmente, o próprio Osama bin Laden é um apóstolo fervoroso do conceito de "choque de civilizações".
Fukuyama remonta a pandemia do anti-americanismo ao fim da Guerra Fria e a consequente entronização dos EUA como a solitária super-potência de um mundo "unipolar". Em relação aos neo-conservadores, Fukuyama demonstra que não se trata de uma confraria homogénea - longe disso. Critica o anti-semitismo implícito na assimilação daquela tendência a um "pensamento judeu". E exprime a convicção de que algumas das ideias "neo-cons" resistem - como a crença em que as ditaduras são perigosas para a paz mundial, devido às suas inerentes vocações totalitárias. Por outro lado, não passa pela cabeça do autor a evidência de que o seu best-seller O Fim da História (admirado também pela administração Clinton) contribuiu, e bastante, para o triunfalismo perverso que ele agora censura.
Nesta tétrica embrulhada, quase todos (desde Ian McEwan até eu próprio) nos penitenciamos pelo nosso wishful thinking. Se errar é humano (embora de boas intenções o Inferno continue apinhado), ao menos Fukuyama não resvala para o disparate antitético, que é o de renegar a universalidade da democracia. Quando inventarem um regime menos mal, belisquem-me. Não será certamente a teocracia islâmica, com o seu obscurantismo medieval e a infantilização da mulher. |