Cristo Rei

<p>Foi edificado para celebrar a paz, agradecimento por Portugal não ter participado na Segunda Guerra Mundial. Na última metade do século XX, o Santuário de Cristo Rei, em Almada, evoluiu. Já não é apenas um miradouro. Tem um Centro de Acolhimento aos Peregrinos, onde vivem duas freiras, que relatam o seu dia-a-dia à <strong>nm</strong>. No próximo domingo decorrem as comemorações do 50.º aniversário, com a presença da imagem de Nossa Senhora de Fátima.</p> <p> </p>
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Sentada atrás do balcão, Elisa Pedro, 68 anos, borda uma almofada de Arraiolos. Interrompe o ritmo da agulha sempre que se aproxima um cliente, e exibe um sorriso paciente. Elisa Pedro é uma das lojistas de artigos religiosos do Santuário de Cristo Rei, Almada. Há 49 anos começou a trabalhar naquele espaço. Por isso, é com satisfação que ajuda nos preparativos para as celebrações do 50.º aniversário do santuário, no próximo domingo, 17 de Maio. «Vai ser uma grande festa. Vou colaborar em tudo o que for preciso», afirma, entusiasmada.
Toda a colaboração será necessária. As festividades estão a ser organizadas desde o ano passado. Começam logo no sábado, com a chegada da imagem de Nossa Senhora de Fátima a Lisboa, e culminam com a celebração de uma missa, no santuário, conduzida pelo enviado especial do Papa Bento XVI, o cardeal José Saraiva Martins. O Presidente da República, Cavaco Silva, já garantiu a presença.
Pelo meio contam-se várias iniciativas em torno da terceira visita da imagem de Nossa Senhora à capital, entre as quais uma procissão fluvial no Tejo. «Esperamos mais de duzentas mil pessoas», declara Francisco de Noronha à nm, um dos membros da comissão do cinquentenário, lembrando que em 1959, aquando a inauguração, compareceram cerca de trezentas mil.

Pagar promessas
Elisa Pedro recorda com nostalgia o dia em que as portas do santuário se abriram ao mundo: «Estava ainda na minha terra, em Santarém, mas segui tudo pela rádio.» Meses depois transferiu a sua vida para o Alto do Pragal, Almada, onde permaneceu até hoje.
Ao longo do tempo, habituou-se a atender clientes de várias nacionalidades. Uns, com propósitos meramente turísticos, «compram lembrancinhas», esclarece. Outros, «com sentido religioso, levam uma imagem de Nossa Senhora ou do Cristo Rei». No centro das atenções, actualmente, estão os terços alusivos ao quinquagésimo aniversário. Custam 2,5 euros e estão disponíveis em várias cores. «Há mais objectos a ser preparados: porta-chaves, selos…», acrescenta.
Quando os visitantes assim o desejam, Elisa Pedro prontifica-se a uma palavra de conforto. Está também habituada a ver pessoas pagar promessas, no sentido literal da palavra, pois o método mais usual é a entrega de donativos. No entanto, já viu chegarem ao topo do monumento de 110 metros de joelhos. «Vêm adorar Jesus Cristo e Nossa Senhora da Paz», cuja imagem da autoria do escultor Leopoldo de Almeida está exposta na capela com o mesmo nome.

Combater o rótulo de miradouro
Cinquenta anos volvidos, o santuário apresenta progressos. Actualmente, emprega vinte funcionários e conta com vários voluntários. Há oito anos fizeram-se obras de requalificação. Construíram-se novas infra-estruturas de apoio. Parque de merendas, cafetaria, reitoria, Centro de Acolhimento aos Peregrinos, com uma capela, biblioteca, dormitórios, refeitórios e salas de conferência. No total, investiu-se um milhão de euros. As colectas nacionais para o efeito renderam cerca de trezentos mil. O restante tem vindo a ser pago com donativos.
Mais recentemente, o reitor dedicou-se ao melhoramento da capela de Nossa Senhora da Paz, na base do pedestal, e à construção, no topo, da capela dos Confidentes do Divino Coração. «Mudanças para que o Cristo Rei deixe de ser visto como um simples miradouro, e passe a ser visto como um santuário», defende o reitor e sacerdote, Sezinando Alberto.  
Os resultados estão à vista. As peregrinações têm aumentado, subindo a média de visitas para duzentos mil por ano. Tendência que também acontece com os casamentos e baptizados. «Vêm cá noivos dizer que os pais casaram cá, que foram baptizados cá e que também cá querem casar. Só no ano passado celebrámos trinta casamentos e 29 baptizados», quantifica o reitor.
«Todas estas obras e actividades têm dado uma grande espiritualidade ao santuário, porque se não houver imagem, a pessoa nem se apercebe onde está», constata Elisa Pedro, acrescentando que inicialmente dava assistência na capela, tendo sido substituída por duas freiras.

Irmã Jacinta e irmã Alzira
Maria Amélia Afonso, 68 anos, é nome de baptismo. Irmã Jacinta é nome religioso. É assim que todos a tratam. Aos 16 anos deixou a família, no concelho de Sabugal, e rumou a Beja, onde ingressou na Congregação das Oblatas do Divino Coração, fundada em 1926 pelo então bispo de Beja, José de Patrocínio Dias. «Senti um grande desejo de consagrar a minha vida a Jesus Cristo. Foi um bocadinho doloroso separar-se da família, porque era muito nova. Quando vi o meu pai a chorar não consegui conter as lágrimas. Mas a minha mãe nunca chorou diante de mim. E dizia: ‘”Filha, a gente tem coragem”», relata a irmã Jacinta à nm.
Seguiram-se anos de dedicação. Primeiro, o postulantado, que chama de namoro com Deus, e que dura um ano ou ano e meio. Consolidado o namoro, partiu para o noivado de dois anos, apelidado de noviciado: «Serve para conhecermos melhor Jesus Cristo. Para ver se somos capazes de abraçar aquele estado de vida.» Caso consigam passar estas duas fases da relação, fazem votos: «De pobreza, castidade, recolhimento e obediência.»
Ao abrigo do voto de obediência, acatou sem objecções a transferência para o Santuário de Cristo Rei, onde reside há cinco anos. Partilha o espaço com a irmã Alzira (do Carmo Teixeira), 72 anos, da mesma Congregação, que explica: «O meu nome religioso é Maria da Visitação, mas desde o Papa João Paulo II podemos usar o nome de baptismo.»
De avental e pano de cozinha na mão, irmã Alzira vai respondendo às questões, enquanto põe a mesa. Esta semana cabe-lhe a tarefa de cozinhar o almoço para os funcionários da reitoria: «Estou a fazer uns restinhos de carne estufada com esparguete. Mas algumas, com a mania das dietas, já me pediram pescada.»
Geralmente, as lides da cozinha são responsabilidade da irmã Jacinta. «Gosto mais de andar a cuidar da nossa horta, onde temos umas couves, uns nabos…», justifica irmã Alzira. Ambas estão encarregues do Centro de Acolhimento aos Peregrinos. Trabalho pelo qual recebem uma gratificação do reitor, a rondar o ordenado mínimo nacional. Têm uma folga por semana, que normalmente é gozada em dias úteis. Nos fins-de-semana têm maior fluxo de visitas.
«O santuário está quase sempre ocupado. Ou para retiro espiritual, ou para formação religiosa. Muitos grupos vêm preparar-se para o Crisma. Acolhemos os jovens, para que eles façam as suas actividades. Temos peregrinações organizadas de várias dioceses», determina Sezinando Alberto à nm.
Seja dia de receber ou de preparar actividades seguintes, o despertador toca às 06h45. «Tomamos o nosso duche e vamos rezar as laudes (oração da manhã). Depois vamos comer e fazemos aquilo que tiver de ser feito. Às vezes vamos às compras, organizamos as limpezas», descreve a irmã Jacinta.
Os refeitórios, com capacidade para perto de trezentas pessoas, ou as camaratas (com setenta camas) e respectivas casas de banho para rapazes e raparigas são as zonas mais trabalhosas. «Às vezes quando os grupos são mais pequenos, e cabem todos numa camarata, não obrigamos a separar os rapazes das raparigas. Eles portam-se todos bem. Nunca tivemos nenhum problema de maior», continua.
Uma vez instalados, os visitantes podem usufruir das salas para as actividades, e assistir às celebrações religiosas. Têm ainda a possibilidade de fazer as refeições. Factor que, de acordo com a irmã Jacinta, influencia o preço: «Se eles quiserem cozinhar pagam mais ou menos oito euros por pessoa por noite. Se nós cozinharmos para eles já é um bocadinho mais do que dez».   
Entre o almoço e o jantar, regressam à capela para rezar o terço, as vésperas e a eucaristia, que pode ser orientada pelo sacerdote Sezinando Alberto ou pelo capelão Pedro. Às 19h00 recolhem aos seus aposentos, fazem o jantar e vêem televisão. Porém, antes de irem para a cama, resta-lhes a oração da noite, «as nocturnas». No dia seguinte, o relógio repete as mesmas voltas.
As celebrações do cinquentenário vêm quebrar esta rotina. Muitos dos presentes estão convidados para o almoço, que será self-service. «Ainda nem pensei qual vai ser o prato. Mas já sei que vamos ter muito que fazer…» O aproximar do trabalho, contudo, parece não a incomodar. O esforço, diz, será suplantado pela alegria da chegada de Nossa Senhora de Fátima: «Significa que como eu não vou ao encontro da mãe, a Fátima, vem ela ao meu encontro. Ela vem ao encontro do filho, e ao encontro dos outros filhos. Porque somos todos irmãos de Jesus Cristo.»

Programa das festividades
Será a décima vez, em 85 anos, que a imagem de Nossa Senhora do Rosário de Fátima vai sair da Capela das Aparições, e a terceira que ruma a Lisboa, a primeira das quais por ocasião de Cristo Rei, aquando a sua inauguração.
Na manhã de sábado, Nossa Senhora é transportada até à capital «anonimamente, sem qualquer aparato. Tem um estojo branco de pele do formato da imagem e almofadada para melhor protecção. Vai num carro particular sob a responsabilidade da Associação de Servitas e com um carro da Brigada de Trânsito a acompanhar. À sua espera em Lisboa estará uma escolta da PSP que a conduzirá ao seu primeiro destino, o Hospital da Estefânia», detalha Francisco de Noronha.
Em jipe aberto, sob uma redoma de vidro transparente, Nossa Senhora de Fátima irá descer até ao Terreiro do Paço, onde a espera uma procissão com cerca de três mil crianças. «Simboliza, antes de mais, a própria história de Fátima com as três crianças [pastorinhos], e depois a esperança no futuro, a pureza, inocência…», contextualiza.
Ainda no Terreiro do Paço, o cardeal patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, celebra uma missa. Às 19h00 inicia-se a procissão fluvial, que levará a imagem até à outra margem do Tejo. Qualquer embarcação poderá acompanhar a travessia de Nossa Senhora, que será transportada num barco da Marinha. Estão confirmadas mais de 26 embarcações, entre as quais o navio-escola Sagres. 
Uma vez na margem sul, o andor vai ser seguido em procissão de velas, até à Igreja Paroquial de Almada, onde pernoita numa vigília nocturna. De manhã, na mesma igreja, o bispo de Setúbal, Gilberto Reis, preside a nova missa. Finalmente, última procissão até ao santuário, onde o enviado especial do Papa assume destaque.
Sem conseguir precisar, o reitor fala num orçamento de centenas de milhares de euros para as comemorações. Além do apoio de alguns patrocínios, conseguiram reunir verbas, através, por exemplo, da publicidade luminosa que ocupou o monumento no Natal passado – e «rendeu cem mil euros».
Os trabalhos de preparação desenrolam-se a todo o vapor. Há que terminar as obras no interior do monumento, sobretudo a Via-sacra, que vai aproximar os santuários de Cristo Rei e Fátima. «Estes dois santuários estão ligados – quer fisicamente, porque o voto de construção deste foi feito em Fátima, quer espiritualmente, porque a mensagem de paz difundida pelo Santuário de Fátima foi continuada no Santuário de Cristo Rei.»

Construção do Cristo Rei
Em 1940, os bispos reuniram-se em Fátima e fizeram um voto secreto, no qual prometeram que, caso Portugal não entrasse na Segunda Guerra Mundial, seria construído o santuário. Seis anos depois, tornaram a intenção pública, justificando-a como celebração da paz, pois o país manteve-se alheio aos conflitos.
No entanto, o começo da história do projecto remonta à década de trinta. Mais precisamente a 1934, ano em que o cardeal Manuel Cerejeira, na altura patriarca de Lisboa, visitou o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. «E mostrou logo intenção de construir algo semelhante no país», relata o reitor.
As construções arrancaram em 1952, com uma campanha nacional de angariação de fundos, que durou até 1960. «No ano de 1959 foi inaugurado o monumento, cuja imagem é da autoria do mestre Francisco Franco.» Centenas de milhares de pessoas juntaram-se aos bispos portugueses da altura para ouvir a mensagem rádio enviada pelo então Papa João XXIII. Na lista dos presentes constava também o cardeal do Rio Janeiro. Figura que, nas comemorações no próximo fim-de-semana, vai fazer-se representar pelo reitor do Cristo Redentor.
«A vinda do reitor do Cristo Redentor faz parte de um protocolo que procura geminar as duas imagens, os dois irmãos. Ele vai trazer-nos uma réplica da imagem do Corcovado com 1,10 metros, e depois eu vou ao Brasil, em data a combinar, levar-lhe uma réplica do nosso», explica Sezinando Alberto, salientando, contudo, a diferença entre os dois monumentos. «O nosso Cristo Rei é a expressão do sagrado coração. É mais humano. A expressão do rosto mostra isso mesmo. Ele é rei na prestação dos seus serviços, de forma desinteressada.»

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