Quando há 30 e tal anos comecei a escrever em jornais encontrei nas redações da imprensa, da rádio e da televisão desse tempo vários jornalistas, escritores e cronistas, homens e mulheres, relevantes, influentes, poderosos, que se orgulhavam de, em alguma altura da sua carreira, terem escrito para publicações populares e femininas da época..Muitos jornalistas explicavam que, 10 ou 20 anos antes, durante o Estado Novo, o facto de terem escrito para campeãs de audiências de então, como as revistas "Moda e Bordados" ou "Crónica Feminina", lhes tinha ajudado a garantir trabalho extra e uma fonte de rendimento que era (sobretudo para intelectuais rotulados como "comunistas") difícil de garantir na imprensa diária. E várias jornalistas mulheres, num mundo profissional extremamente machista, simplesmente não encontravam emprego noutro sítio..Mas a coisa foi bem mais importante do que isso..Escrever em revistas femininas permitiu a vários opositores do regime e da moral vigente na época introduzir nessas publicações temas que, podendo na aparência serem politicamente irrelevantes, contribuíam para a formação nas leitoras de uma ideia diferente do papel que lhes estava, à partida, destinado na sociedade..Ao lado das receitas de cozinha, da costura, das rendas, dos modelos e das fotonovelas (sim, nesse tempo não havia telenovelas...) essas revistas começaram a ter artigos que iam para além dos assuntos simplórios destinados à "dona de casa", que o regime e a cultura da época idealizavam e normalizavam numa vida pessoal quase restrita à gestação dos filhos e à obediência ao marido, que até era institucionalmente e juridicamente apelidado de "chefe de família"..Discriminação, violência doméstica, educação sexual, trabalho, direito da família, uma conceção de vida feminina com liberdade e autonomia individuais começaram, mesmo em formato incipiente, a ser mostrados, analisados e debatidos aí..Isso, não haja dúvidas, fez muito pela queda da mentalidade que sustentava o regime fascista ao fazer chegar, a muitas mulheres de classes sociais mais baixas ou de meios familiares mais retrógrados, visões e alternativas de vida em sociedade que só estavam ao alcance de mulheres com acesso a níveis de educação, formação e leituras que não chegavam ou não interessavam à maioria..Este passo foi importante para o processo, de história bem complexa (ainda em curso, mais de meia centena de anos depois) de libertação da mulher em Portugal..O "infotainment", portanto, existe há muito tempo. O "infotainment", portanto, é politicamente relevante: é com ele que se constrói boa parte do pensamento dominante nas sociedades..O Presidente da República, cuja vida política se confunde com uma carreira mediática, conhece esta verdade de La Palisse melhor do que ninguém..O telefonema de Marcelo Rebelo de Sousa, em direto, para o programa da apresentadora Cristina Ferreira, surge dessas lógicas de análise e de ação e, por isso, não vejo nele qualquer anormalidade - e não é por a SIC e TVI estarem numa guerra de audiências que o juízo que faço sobre este tipo de atuação do Presidente da República se altera..O telefonema de Marcelo a Cristina Ferreira é apenas mais um episódio de uma narrativa de Presidência omnipresente, com um titular que aparece a falar de tudo e de nada, certamente populista (e isso pode agora, circunstancialmente, ser bom para o país mas, a médio prazo, pode ser péssimo para a democracia), algumas vezes inoportuno mas coerente, consistente e, quase sempre, sensato...portanto, insisto, criticável ou elogiável, mas nada surpreendente..O que é surpreendente é a reação pública ao telefonema para a SIC de Marcelo Rebelo de Sousa, que fui lendo por aí, incluir, frequentemente, uma componente arrogante contra a intervenção ou envolvimento de políticos de topo e do "jornalismo sério" em programas como o de Cristina Ferreira ou de Manuel Luís Goucha..Confronto-me nos dias de hoje, entre os meus pares profissionais mais relevantes, em bizarro contraste com o tempo do início da minha profissão, com uma atitude maioritária de desprezo, de nojo sobre o trabalho produzido nesse tipo de programas televisivos..É um erro - Cristina Ferreira, Manuel Luís Goucha, Júlia Pinheiro, Fátima Lopes, Jorge Gabriel, Sónia Araújo, Tânia Ribas de Oliveira e muitos outros apresentadores chegam, todos os dias, a mais de 2 milhões de pessoas. Nenhum diretor de jornal, nenhum cronista de topo, nenhum jornalista de referência tem este poder de influência junto da população. Eles e as suas equipas merecem respeito..Muitos destes programas, ao longo dos anos, ajudaram Portugal a combater ou a esbater o racismo, a homofobia, a violência doméstica, a discriminação sexual, a indiferença para com o interior, os maus hábitos alimentares, a sinistralidade rodoviária, as más práticas na saúde..Também promoveram o hedonismo, o individualismo, o consumismo, o justicialismo, o alarmismo, o liberalismo económico, a futilidade, a superficialidade..Estes programas tiveram e têm muitas coisas boas e muitas coisas más, como toda a comunicação social, mas são, sobretudo, extremamente influentes..Tal como no passado fizeram as revistas femininas, os programas familiares das televisões constroem boa parte do pensamento dominante das nossas sociedades..No passado, jornalistas, escritores e intelectuais progressistas, modernos, arejados, viram no "infotainment" das revistas femininas uma oportunidade para chegar ao país real e ajudar a formar uma opinião pública mais capaz e mais exigente..No presente, o "infotainmet" é desprezado pelas supostas melhores cabeças da comunicação social, "enojadas com a piroseira", numa velha snobeira queirosiana que entrega este pasto mediático para alimento de quem descobre poder comer dele - e o criminoso e neonazi Mário Machado foi o último exemplo mais assustador... Depois, admirem-se.
Quando há 30 e tal anos comecei a escrever em jornais encontrei nas redações da imprensa, da rádio e da televisão desse tempo vários jornalistas, escritores e cronistas, homens e mulheres, relevantes, influentes, poderosos, que se orgulhavam de, em alguma altura da sua carreira, terem escrito para publicações populares e femininas da época..Muitos jornalistas explicavam que, 10 ou 20 anos antes, durante o Estado Novo, o facto de terem escrito para campeãs de audiências de então, como as revistas "Moda e Bordados" ou "Crónica Feminina", lhes tinha ajudado a garantir trabalho extra e uma fonte de rendimento que era (sobretudo para intelectuais rotulados como "comunistas") difícil de garantir na imprensa diária. E várias jornalistas mulheres, num mundo profissional extremamente machista, simplesmente não encontravam emprego noutro sítio..Mas a coisa foi bem mais importante do que isso..Escrever em revistas femininas permitiu a vários opositores do regime e da moral vigente na época introduzir nessas publicações temas que, podendo na aparência serem politicamente irrelevantes, contribuíam para a formação nas leitoras de uma ideia diferente do papel que lhes estava, à partida, destinado na sociedade..Ao lado das receitas de cozinha, da costura, das rendas, dos modelos e das fotonovelas (sim, nesse tempo não havia telenovelas...) essas revistas começaram a ter artigos que iam para além dos assuntos simplórios destinados à "dona de casa", que o regime e a cultura da época idealizavam e normalizavam numa vida pessoal quase restrita à gestação dos filhos e à obediência ao marido, que até era institucionalmente e juridicamente apelidado de "chefe de família"..Discriminação, violência doméstica, educação sexual, trabalho, direito da família, uma conceção de vida feminina com liberdade e autonomia individuais começaram, mesmo em formato incipiente, a ser mostrados, analisados e debatidos aí..Isso, não haja dúvidas, fez muito pela queda da mentalidade que sustentava o regime fascista ao fazer chegar, a muitas mulheres de classes sociais mais baixas ou de meios familiares mais retrógrados, visões e alternativas de vida em sociedade que só estavam ao alcance de mulheres com acesso a níveis de educação, formação e leituras que não chegavam ou não interessavam à maioria..Este passo foi importante para o processo, de história bem complexa (ainda em curso, mais de meia centena de anos depois) de libertação da mulher em Portugal..O "infotainment", portanto, existe há muito tempo. O "infotainment", portanto, é politicamente relevante: é com ele que se constrói boa parte do pensamento dominante nas sociedades..O Presidente da República, cuja vida política se confunde com uma carreira mediática, conhece esta verdade de La Palisse melhor do que ninguém..O telefonema de Marcelo Rebelo de Sousa, em direto, para o programa da apresentadora Cristina Ferreira, surge dessas lógicas de análise e de ação e, por isso, não vejo nele qualquer anormalidade - e não é por a SIC e TVI estarem numa guerra de audiências que o juízo que faço sobre este tipo de atuação do Presidente da República se altera..O telefonema de Marcelo a Cristina Ferreira é apenas mais um episódio de uma narrativa de Presidência omnipresente, com um titular que aparece a falar de tudo e de nada, certamente populista (e isso pode agora, circunstancialmente, ser bom para o país mas, a médio prazo, pode ser péssimo para a democracia), algumas vezes inoportuno mas coerente, consistente e, quase sempre, sensato...portanto, insisto, criticável ou elogiável, mas nada surpreendente..O que é surpreendente é a reação pública ao telefonema para a SIC de Marcelo Rebelo de Sousa, que fui lendo por aí, incluir, frequentemente, uma componente arrogante contra a intervenção ou envolvimento de políticos de topo e do "jornalismo sério" em programas como o de Cristina Ferreira ou de Manuel Luís Goucha..Confronto-me nos dias de hoje, entre os meus pares profissionais mais relevantes, em bizarro contraste com o tempo do início da minha profissão, com uma atitude maioritária de desprezo, de nojo sobre o trabalho produzido nesse tipo de programas televisivos..É um erro - Cristina Ferreira, Manuel Luís Goucha, Júlia Pinheiro, Fátima Lopes, Jorge Gabriel, Sónia Araújo, Tânia Ribas de Oliveira e muitos outros apresentadores chegam, todos os dias, a mais de 2 milhões de pessoas. Nenhum diretor de jornal, nenhum cronista de topo, nenhum jornalista de referência tem este poder de influência junto da população. Eles e as suas equipas merecem respeito..Muitos destes programas, ao longo dos anos, ajudaram Portugal a combater ou a esbater o racismo, a homofobia, a violência doméstica, a discriminação sexual, a indiferença para com o interior, os maus hábitos alimentares, a sinistralidade rodoviária, as más práticas na saúde..Também promoveram o hedonismo, o individualismo, o consumismo, o justicialismo, o alarmismo, o liberalismo económico, a futilidade, a superficialidade..Estes programas tiveram e têm muitas coisas boas e muitas coisas más, como toda a comunicação social, mas são, sobretudo, extremamente influentes..Tal como no passado fizeram as revistas femininas, os programas familiares das televisões constroem boa parte do pensamento dominante das nossas sociedades..No passado, jornalistas, escritores e intelectuais progressistas, modernos, arejados, viram no "infotainment" das revistas femininas uma oportunidade para chegar ao país real e ajudar a formar uma opinião pública mais capaz e mais exigente..No presente, o "infotainmet" é desprezado pelas supostas melhores cabeças da comunicação social, "enojadas com a piroseira", numa velha snobeira queirosiana que entrega este pasto mediático para alimento de quem descobre poder comer dele - e o criminoso e neonazi Mário Machado foi o último exemplo mais assustador... Depois, admirem-se.