Cristina Branco

Nunca procura uma ruptura com o fado, mas o caminho de Cristina Branco tem sido singular na forma como vai revelando um interesse em ir além dos limites desta música, como prova o mais recente Não Há só Tangos em Paris.
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Cristina Branco pode já ter 11 discos editados, um sucesso internacional considerável, onde se destacam países como a Holanda, onde gravou o seu primeiro registo, Cristina Branco Live in Holland, com mais de cinco mil cópias vendidas, ou a França, que desde cedo a acolheu com carinho, tendo recebido em 1999 o Prémio Choc da revista Le Monde de la Musique perante alguns «monstros» sagrados da música clássica, como Alfred Brendel ou Cecilia Bartoli. Apesar deste percurso, em Portugal chegou a ser associada como a «enfant terrible» do fado, por não se querer limitar a esta música, revelando ao longo do seu trabalho que a sua versatilidade enquanto intérprete por vezes a leva a alargar os seus horizontes e a encetar viagens por outros mundos que não o do fado.

Agora tem um novo disco entre mãos, intitulado Não Há Só Tangos em Paris, e volta-nos a trocar as voltas, apesar de não ter propriamente esse propósito. Este é mesmo o seu primeiro disco com fados tradicionais. O primeiro, fado súplica, ouve-se logo na abertura, com Se não Chovesse tanto, Meu Amor, já o fado menor do Porto, com Não É Desgraça Ser pobre, ouve-se já bem perto do final. Mas estes temas não são os únicos que para Cristina Branco podem ser considerados fados: «Há músicas que não sendo ainda fado, poderão um dia ter esse carimbo, tudo depende da abordagem das coisas. Para mim tem muito que ver com o contexto e este disco está muito próximo dessa linguagem», referiu.

Mais que um género musical intrinsecamente português, e que ao longo dos anos tem exportado a cultura portuguesa com excelentes resultados (de Amália a Mariza, já muitas vozes foram bem sucedidas internacionalmente), a verdade é que o fado é também um estado de alma e uma forma de se estar na vida. Aí a abordagem de Cristina Branco à música está inegavelmente ligada ao fado, cante em português, francês ou espanhol. Não nos admiremos portanto que nem leve a mal a tal associação de «enfant terrible» do fado: «Para mim não é nada negativo, até achei graça. Não me importo nada de ser um "enfant terrible" do fado porque quando eu quero mesmo cantar fado, ele está lá na sua forma mais pura.» Nestas histórias há sempre um «mas», e hoje a própria Cristina Branco admite que não é uma cantora exclusiva de fado: «Tenho descoberto coisas incríveis e maravilhosas com o fado, mas eu gosto genuinamente de cantar outras coisas. Não posso só cantar uma coisa porque me limita. Se isto é ser "enfant terrible" do fado... também chamavam "enfant terrible" ao Jean-Paul Gaultier, por isso, porreiro», afirmou.

O fado, o tango e a saudade

Esta filosofia tem provado como Cristina Branco é cada vez mais uma cantora interessada em olhar para além dos seus horizontes e da sua zona de conforto, arriscando constantemente entregar-se a outros registos musicais. Quando em 1997 lançou Cristina Branco Live in Holland já fazia versões de Sérgio Godinho (As Certezas do Meu Amor mais Brilhante) ou de Luís Vaz de Camões, com música de José Afonso (Pombas Brancas). Este último músico foi mesmo homenageado num disco seu composto inteiramente de versões das suas músicas, Abril, de 2007. Já cantou também uma das canções mais incontornáveis de Joni Mitchell, A Case of You, para o álbum Ulisses, lançado em 2005.

Agora para este Não Há só Tangos em Paris a cantora quis olhar para esta música de raiz argentina de uma outra forma, tentando perceber o que é que aproxima o tango do fado. Acabou por sentir que no tango há músicas que se assemelham, «de uma forma quase vergonhosa, mas no bom sentido», ao fado. E exemplificou: «No tango há uma coisa chamada La Violeta, que faz lembrar imenso os fados dos anos quarenta, e foi esse universo que eu quis juntar ali, o ambiente e a nostalgia dessa época.» Mas, como todos sabemos, o fado é também uma música caracteristicamente triste, dada a sua ligação à saudade. E foi precisamente na abordagem à tristeza que Cristina Branco enfrentou as diferenças mais gritantes entre o fado e o tango. Se por um lado esta música argentina não comporta qualquer pudor em poder revelar a sua carga sensual, sendo até, nas palavras da própria cantora, «bastante histriónico na forma como se exibe», já o fado, sendo uma música profundamente nostálgica, não consegue ser tão despudorado como o tango.

Apesar de um álbum com um título como Não Há só Tangos em Paris, Cristina Branco não era uma ouvinte acérrima de tango, embora seja uma apaixonada pela música de Astor Piazzolla, hoje considerado o mais importante compositor de tango da segunda metade do século XX, conquanto ele próprio tenha ouvido na década de sessenta, pelas vozes dos puristas, que a sua música não era verdadeiramente tango. Outro dos nomes que mais admira neste género é Carlos Gardel, uma das vozes mais famosas do tango. A dança também fascina a cantora, «é fenomenal em toda a sua sensualidade», apesar de acabar por confessar que o «jeito» para dançar, «seja o que for», é nenhum. Todavia, o tango também é conhecido por evidenciar, por vezes, uma faceta misógina: «Todos já ouvimos tango e sabemos que consegue ser muito misógino, mas isso não aparece no disco, obviamente.»

Se não era uma ouvinte acérrima de tango, algo semelhante já tinha acontecido antes com o fado. Ao contrário da maioria das fadistas da sua geração, não viveu a adolescência a frequentar casas de fado ou a ouvir os nomes tradicionais. Cantoras como Billie Holiday, Joni Mitchell, Janis Joplin ou Ella Fitzgerald estavam entre as suas preferências. Só quando celebrou 18 anos e o seu avô lhe ofereceu o disco Rara e Inédita, de Amália Rodrigues, é que o fado começou a ter uma presença mais constante no seu dia-a-dia. Aliás, na altura ambicionava sim uma carreira no jornalismo, mas de alguma forma acabou por escolher o fado (ou o fado por escolhê-la a ela).

Possivelmente o facto de desde cedo não ter uma ligação tradicional com o fado permitiu-lhe não se restringir a ele. Aliás, neste Não Há só Tangos em Paris acaba por colaborar com uma série de artistas de vêm de outros quadrantes musicais, como por exemplo os músicos de jazz Mário Laginha, João Paulo Esteves da Silva ou Pedro Moreira, além dos compositores Pedro da Silva Martins (dos Deolinda, que assina o tema homónimo) ou Carlos Tê. Com alguns destes nomes já tinha colaborado noutros projectos, mas neste álbum acaba por cantar pela primeira vez poemas de Manuela de Freitas e António Lobo Antunes: «Quem é novo no disco é a Manuela de Freitas, que é como se a conhecesse muito bem porque sempre adorei o que ela fez para o Camané, e por isso foi fácil chegar até ela e pedir-lhe que escrevesse para o disco. O António Lobo Antunes também é a primeira vez que assina uma letra para mim (para a canção Quando Julgas que Me Amas, com música de Mário Laginha)», referiu.

«A tristeza é cultural»

Cristina Branco poderia ter criado este novo álbum sem nunca ter visitado a cidade de Buenos Aires, berço do tango. Certamente poderia, mas o resultado que hoje está à vista seria, muito provavelmente, bem diferente. A única vez que visitou a capital argentina foi na mesma altura em que se aproximou pela primeira vez desta música, no álbum Ulisses, editado em 2005, com uma versão de Alfonsina y El Mar. Tal como quando gravou este novo álbum, também quando visitou Buenos Aires se apercebeu de algumas semelhanças culturais entre o nosso país e a Argentina: «A tristeza imensa é culturalmente parecida com a dos portugueses», recordou. Todavia há sempre particularidades que caracterizam cada povo e que acabam por os distinguir, como percebeu Cristina Branco nessa viagem: «Nós conseguimos ser profundamente tristes e cantar a tristeza de uma forma muito intensa. Os argentinos dão sempre um twist que nós não conseguimos dar, dão sempre aquele toque latino-americano e, por isso, no fundo fica sempre tudo mais solto», explicou.

Ter um contacto mais directo com toda aquela cultura que já apreciava levou a fadista a apaixonar-se pela Argentina «e pela forma de estar dos argentinos, com aquela nobreza profunda e com a forma apaixonada de viver a vida». Culturalmente, aliás, surpreendeu-a o genuíno interesse dos argentinos pelo que é seu, o orgulho em ter nascido naquele país e o nível cultural que aquele povo evidencia: «Fiquei maravilhada com a Argentina e o que mais me surpreendeu foi o nível cultural deles. Os livros e os discos não custam mais de quatro ou cinco euros, toda a gente vai à ópera. Podes viver no limiar da pobreza, mas lês. As pessoas são genuinamente interessadas na sua cultura e em se cultivarem. Há um orgulho em se ser argentino que é latente naquela cidade e isso é realmente muito interessante», contou.

Ao ter uma noção mais precisa de como os argentinos vivem e se interessam pela sua cultura, a cantora começou também a olhar de uma forma ainda mais profunda para o seu país. Contactar com outras culturas e realidades desconhecidas permite sempre um maior enriquecimento, seja ele artístico, cultural ou, simplesmente, pessoal. E apesar de a cantora ver Portugal como «um país de viagens», não deixa de considerar que «fechámo-nos sobre nós mesmos» e, por isso mesmo, poderíamos aprender bem mais com a forma de estar e viver dos argentinos: «Se nós tivéssemos essa possibilidade ou se fôssemos educados nesse sentido, teríamos um olhar diferente sobre o mundo. Quando exploramos o que está fora do nosso raio de acção e da nossa zona de segurança, acabamos por abrir os nossos horizontes e, de certa forma, falta-nos isso.»

Provavelmente essa vontade de Cristina Branco de olhar sempre mais além contribuiu para que tivesse de ser primeiro aplaudida no estrangeiro e posteriormente reconhecida em Portugal. «Se calhar não ajuda, não», afirma-nos a cantora, sem qualquer ponta de resignação ou tristeza na voz. Sabe desde cedo o caminho que quer percorrer para o seu percurso na música e no fado, e é isso que realmente importa. Daí que nos confirme que o facto de ter sido primeiro reconhecida, e editada, na Holanda, do que em Portugal, não a entristeça de todo: «Acontece com muitos cantores, não sou caso único.» E acrescenta: «Dentro do possível afasto-me da máquina do marketing, ou seja, defendo-me e omito a minha presença muitas vezes. E o pior no nosso país é que é necessária essa exposição, e eu não a dou.» Certamente que não vemos Cristina Branco expor os meandros da sua vida pessoal com leviandade.

«Preciso mesmo de ser mãe»

Todavia, como a própria afirma, a Cristina Branco cantora que hoje conhecemos não seria a mesma se também não fosse a mulher e a mãe. Foi mesmo «vital» a certa altura ser mãe (tem dois filhos): «Eu preciso mesmo de ser mãe, de ter esse comportamento inquieto e vigilante sobre dois indivíduos que são os meus filhos.» No entanto, se se imagina que este tipo de profissão pode, por vezes, impedir de se dar o nível de atenção desejável à família, num rodopio que envolve concertos, muitas viagens, entrevistas, gravações e uma série de outros compromissos adjacentes à carreira de cantora, Cristina Branco acabou por encontrar um equilíbrio entre todas as suas facetas e obrigações: «Hoje já não posso dizer que seja complicado. Também já passaram 15 anos desde que comecei. Além disso a família é algo que eu faço questão de preservar, porque me dá equilíbrio e faz de mim a cantora e a pessoa que eu sou», refere. A viagem da cantora é a mesma da mulher e da mãe, basta para isso «viveres apaziguadamente com o que te foi oferecido, com o que te foi dado e com o que tu também conquistaste».

A família é também um chão, uma base de segurança que lhe permite sempre ter os pés assentes na terra. Uma carreira artística pode sempre envolver algum tipo de mediatismo que é propício à criação de ilusões. Daí que Cristina Branco afirme que é a família que lhe dá esse «equilíbrio»: «Essa coisa de ser cantor ou artista, um chavão que se utiliza muito mas de que eu não gosto, faz que seja fácil de te iludires com o que está à tua volta. Muito facilmente e rapidamente começas a entrar em órbita e é mesmo muito difícil voltar a olhar para baixo e ter os pés no chão. A família dá-me esse contacto com a terra.»

A cantora, já com vários antes de experiência neste mundo das artes, chegou a aproximar-se dessa ilusão, «perigosamente» como definiu, apesar de nunca realmente ter entrado em órbita: «Toda a estrutura, a máquina que envolve este tipo de profissão permite que vás para esse lado. É preciso ser racional e ter uma grande força de vontade em te manteres fixo na realidade, naquilo que é realmente importante para ti e não permitires que a máquina te engula», confessou.

Ainda assim, esta vida de cantora é também uma vida repleta de muitas viagens e esta tem sido uma temática recorrente no seu trabalho. Se no álbum Ulisses as viagens que abordava eram no sentido geográfico do termo, recuperando o mito do regresso a casa, neste Não Há só Tangos Em Paris trata-se mais de uma viagem pelas emoções, apesar de ser um trabalho inspirado no triângulo Buenos Aires-Paris-Lisboa. Porque é que Paris e a língua francesa aparecem neste disco? Nas suas pesquisas em torno do tango, Cristina Branco acabou por encontrar várias referências a França, sobretudo à capital: «Tem que ver com a imigração e a ligação intelectual que os argentinos tinham com França.» Daí que tenha integrado no álbum temas como Les Désespérés, de Jacques Brel, Invitation au Voyage, com poema de Charles Baudelaire, musicado por João Paulo Esteves da Silva, ou até Anclao en Paris, que apesar de cantado em espanhol, faz referência à capital francesa. «O primeiro fala do suicídio, da solidão, e até podes imaginar aquela gente toda presa no transatlântico nos anos trinta. Já o tema de Baudelaire é o convite à viagem, o horror ao domicílio, que reaparece no Anclao en Paris, uma história de alguém exilado, preso, que não sabe se consegue ou se quer regressar a Buenos Aires, porque apesar das muitas saudades, França marca imenso», explicou-nos a cantora.

Desta forma, sendo Cristina Branco uma mulher de tantas viagens, mas que nunca abandona o fado, é natural que veja a actual candidatura do fado a património imaterial da humanidade como uma medida importante para esta música e para o país. Conhecendo bem os palcos internacionais, sabe que actualmente já existe um profundo conhecimento do fado, mas a partir de agora poder-se-ão abrir mais portas. Para o bem e para o mal, vai-se perceber melhor o que é Portugal. Além do ensino académico do fado, Cristina Branco acredita que com esta candidatura «os mais ortodoxos vão começar a pensar que o fado pode ser uma música muito mais abrangente e universal do que possa parecer».

Resta-nos então esperar pelo resultado da avaliação da UNESCO, que só será conhecido no final deste ano. Todavia, não será preciso esperar muito mais para ver e ouvir Cristina Branco apresentar este novo álbum ao vivo, já que a cantora tem concerto marcado no Teatro São Luiz, em Lisboa, para o dia 31 de Março, onde estará acompanhada por Carlos Manuel Proença (guitarra), Ricardo Dias (piano e acordeão), Bernardo Moreira (contrabaixo) e Bernardo Couto (guitarra portuguesa).

O mundo a seus pés

Se depois de Ulisses (2005) foi preciso esperar quatro anos para Cristina Branco gravar um álbum de originais (pelo meio lançou umas homenagens, uma a Amália Rodrigues, sob o nome Live, e outra a José Afonso, Abril), de título Kronos (2009), para este Não Há só Tangos em Paris o intervalo foi bem mais curto. Este novo trabalho demonstra uma nova relação de Cristina Branco com o fado, passando pelas suas semelhanças com o tango. Para isso contou com a colaboração de autores e compositores célebres da nossa praça, como por exemplo António Lobo Antunes, Mário Laginha, Vasco Graça Moura, Manuela de Freitas, João Paulo Esteves da Silva ou Pedro da Silva Martins (Deolinda), que assina o primeiro single, homónimo. Se o álbum chega a Portugal já no final deste mês, só em Abril é que será lançado nos mercados internacionais e com um título diferente: Fado Tango.

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