Cristas recusa-se a amuar (Episódio 30)

FICÇÃO POLÍTICA. Assunção Cristas herdou uma liderança mas deu-se conta de que a direita fora ocupada pelo PSD de Passos, amuado por lhe terem dado a volta nas eleições. Então, ela inventou-se, começando por se mostrar ao lado de Marcelo
Publicado a
Atualizado a

No ano passado, também por agosto e nesta página, um folhetim de ficção-política (simples de explicar: factos inventados) decidiu abusar. Uma coisa é dar colorido ao noticiário, outra, perder as estribeiras. Infelizmente, foi por aí que o autor foi, feito louco: pôs o líder do CDS a pedir um encontro secreto com o líder do PS. Estava-se nas vésperas da campanha eleitoral para as legislativas e o dr. Portas propôs ao dr. Costa perderem as eleições. Perderem, quem? Ambos, explicou Portas, pois Portugal estaria ingovernável nos próximos anos e, sendo eles jovens, nos 50 e picos, bem podiam fazer parênteses à carreira e retomá-la quando isto amainasse.

Havia o problema do que fazer com o líder do PSD. Escreveu-se, há um ano: "Quanto a Passos Coelho, ele, Paulo [Portas], estava convencido de que gostaria de continuar a saborear o seu [seu, de Pedro] princípio de Peter." Quem chega ao patamar imerecido, alapa-se, é dos livros. Quanto aos dois do tal encontro, só haveria que encontrar quem nos respetivos partidos lhes regesse o interregno. E escreveu-se, no agosto passado, esta frase de Portas, para Costa: "Eu tenho a Cristas, você há de encontrar alguém."

O folhetim ganhou um pouco de juízo e Costa desconfiou da proposta. Mas Portas estava tão desejoso de perder as eleições que praticou um desculpável crime (surripiou cartazes de cinema) e foi preso no dia de reflexão. Escreveu-se (até custa lembrar, é tão exagerado): "Com a derrota, ele [Portas] passaria a liderança do CDS e podia dedicar os quatro anos de travessia do deserto a ganhar dinheiro no Qatar..." Isto para vos contar a alucinação que foi aquele folhetim.

Este ano, eleições dramáticas, esta página decidiu contar o país tal como fora descrito num carimbo antigo, o de brandos costumes. O Portugal que de tão português decidiu extremar o seu bom senso. Um Presidente feito pessoa. Os partidos, todos eles, a serem-no por inteiro, com a novidade de uns a deixarem de ser irresponsáveis e outros a deixarem de diabolizar. Um país onde, como se disse na apresentação desta sequela, até a ficção política não tinha fricção.

Um acontecimento fora da política coroou esta revolução na continuidade: na Europa, a nossa equipa vulgar tornou-se campeã. Foi tão imprevisto e importante que ela se tornou a metáfora de nós. Não sem razão, o Presidente, o protagonista mais atento deste nosso período histórico, agarrou na oportunidade com tanto empenho que apareceu nas flash interview dos estádios. Por trás da vitória improvável, despontava aquela análise feita pelo grande etnólogo e filósofo estrangeiro que, um dia, fantasiado de turista e apanhado por microfone numa esquina portuguesa, escreveu a seguinte tese: "A comida é boa, os lugares são lindos mas o melhor são as pessoas." Consta que no país dele fez um aditamento à obra: "O portugueses não têm picos." Leiam os noticiários mundiais e benzam-se pela pertinência da análise.

Como se sabe, os povos felizes não têm história e, muito menos, folhetins. O que havia esta página de fazer, se não empurrar a normalidade que já se praticava para territórios ainda mais normais? Assim, por exemplo, já que havia reuniões de trabalho do Governo com os representantes dos partidos que o apoiavam, retirou-se delas o lado extravagante. Se era para ser normal, que se assumisse isso até ao inaudito. E, então, as reuniões, que chegavam à dúzia diária - Governo, isto, com PS, com o BE, com o PCP, com os Verdes, Governo, aquilo, com outros tantos partidos, e assim por diante... - passavam a ser, para cada assunto, uma só reunião! Ah, os portugueses podem não ter picos, mas se não forem estas invenções estapafúrdias de ficcionistas, podem ser bem aborrecidos...

[destaque:Aquilo do vestido com kiwis? Era política, os leitores notaram os kiwis. O IMI da Igreja? Era política, o CDS mostrou ter causas. Cristas arriscava-se a ser a oposição]

Outra coisa que a visão folhetinesca da política permite, é falar da vida a decorrer à nossa frente, sem tapá-la por linhas programáticas. A Assunção Cristas, atrás referida, teve o destino que há um ano aqui lhe foi anunciado. Poderia dizer-se: que personagem tão previsível... Errado. É que mal ela foi para liderança do CDS deu-se conta que o lugar estava tomado. A direita estava ocupada por uma força de bloqueio e uma teimosia negativa: o PSD de Passos Coelho, amuado por lhe terem dado a volta nas eleições.

Ora, Cristas começou por se mostrar ao lado da força política mais importante e que morava em Belém - do São João à receção dos campeões. Veio à tona e pôs-se a reinventar-se. Aquilo do vestido com kiwis? Era política, porque os leitores notaram os kiwis, tal como se lembram dos cartazes invertidos. A polémica sobre a ida ao MPLA? Era política, o CDS revelou-se não estar enquistado. O IMI da Igreja? Era política, o CDS mostrou ter causas. Enfim, não sendo uma inexistência amuada, o CDS de Cristas fazia-se a oposição.

Continua amanhã. Leia os episódios anteriores do Folhetim de Verão:

[artigo:5360925]

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt