Cristãos e muçulmanos
Baseados na investigação arqueológica, hoje sabemos que a islamização foi um lento processo de conversão, que apenas no século XI teria atingido a maioria da população urbana do Al-Ândalus
O artefacto arqueológico, quase sempre oculto e esquecido, representando o gesto e a voz daqueles que nunca tiveram história, além de abrir portas inesperadas do passado, mostra sempre outros caminhos bem diferentes dos que tinham sido apontados pelo documento escrito. O monumento arqueológico em toda a sua densidade e veracidade histórica - a pedra alçada, o sítio sagrado de todas as fábulas, a pequena capela de humildes milagres, todos eles solidamente ancorados numa paisagem moldada pelo homem - é também o património inalienável da terra e das pessoas que a trabalham e habitam. Ao contrário da pequena panela de barro, da moeda perdida ou de uns restos de cozinha, que são a linguagem, por vezes cifrada, da arqueologia, o documento escrito é sempre pesadamente ideológico, porque produzido por elites que sabiam escrever, para outras elites, com o objectivo de satisfazer, directa ou indirectamente, a vontade de um encomendador, ou com a pretensão, quase sempre inconfessada, de discursar para a posteridade. E para mais, o documento escrito, para ser credível ao historiador, ou pelo menos para dele ser extraída alguma verdade, deve sempre ser lido, sobretudo, nas entrelinhas.
Segundo todos os textos escritos, tratados e manuais escolares, os exércitos árabes e berberes, comandados por Tarique, teriam invadido a Península Ibérica em 711, implantando o Islão por todo o lado em meia dúzia de anos. Todos os textos cristãos relatam estes trágicos acontecimentos como remissão dos muitos pecados e resultado das fragilidades militares dos indígenas ante a avalancha imparável dos invasores. Do outro lado, do lado dos vencedores, os textos em árabe referem e destacam a providencial ajuda divina para uma vitória tão rápida e avassaladora.
É aqui que a arqueologia fala diferente. Trinta anos de investigação arqueológica em Mértola e no seu território não permitem, de forma alguma, tirar as mesmas conclusões. Muito ao contrário, os resultados são bem diversos. Não negamos que nessa época e desde sempre, Gibraltar tenha sido atravessado nos dois sentidos por bandos armados. Esta zona e suas imediações, foi sempre o local de passagem entre os dois continentes. O que sabemos hoje é que não foram esses exércitos ou soldados a trazer o Islão e a implantá-lo na Península. A islamização, como uns séculos antes acontecera com a cristianização, foi um processo lento e gradual alimentado pelas grandes rotas do comércio mediterrânico. Os grandes movimentos de ideias, as grandes religiões nunca foram ou são difundidas ou impostas por militares. Estes não sabem dialogar ou convencer. O seu papel e eficácia é o saque e a conquista.
De facto, e apenas baseados na investigação arqueológica, hoje sabemos que a islamização foi um lento processo de conversão, que apenas no século XI teria atingido a maioria da população urbana do Al-Ândalus. O mundo camponês, sobretudo o das zonas mais serranas, não só foi superficialmente arabizado como a sua conversão à fé muçulmana foi pouco significativa. Sabemos, isso sim, que nestas zonas rurais alguns antigos templos cristãos foram repartidos com o novo culto muçulmano que nessa altura era ainda muito próximo dos rituais cristãos monofisitas dominantes nestas paragens.
Tudo leva a crer que nesta região do sudoeste peninsular, onde a prospecção arqueológica nos permitiu constatar a existência de um arcaico povoamento berbere (muito anterior às improváveis invasões do século oitavo), o cristianismo dominante fosse de filiação monofisita como no Magrebe, onde eram preponderantes as correntes cristãs mais ou menos próximas do donatismo.
Depois de fracassadas as tentativas de invasão das tropas do general Belisário enviado por Bisâncio (séc. VI) e passados alguns séculos sobre a propalada invasão árabe, o cristianismo ibérico continuou abandonado à sua sorte. Na ausência de qualquer contacto com as hierarquias episcopais ou sacerdotais da Igreja bisantina que, por essa altura, começam em Roma a preparar a expansão da Ordem de Cluny pela Europa e Norte da Península, proliferam pelo Magreb e pela Ibéria vários grupos heterodoxos como os arianos, priscilianos, monotelistas, donatistas e outros monofisismos. São estes cristãos, hostis à ortodoxia romana e bizantina, que entre meados do século VIII e os finais do século XI, portanto antes das invasões Almorávida e Almôada, se começam a converter ao Islão. Também desta vez, como tinha acontecido uns séculos antes com a expansão do cristianismo, os primeiros conversos ao Islão foram os mais desprotegidos, aquelas gentes desenraizadas que enchiam as ruas estreitas das cidades, aqueles embarcadiços que andavam de porto em porto, na aventura incerta da sobrevivência.
São estes antigos habitantes da cidade portuária de Mértola que encontramos enterrados na basílica paleocristã do Rossio do Carmo. Ali encontramos, a partir do século V, as primeiras lápides funerárias, onde se destaca um conjunto de personagens vindos do Oriente de culto cristão monofisita com epitáfios em grego. Nesta mesma basílica, num nível superior, constatamos a existência, numa última fase de enterramentos, de um enorme cemitério muçulmano. Posteriores análises de ADN podem vir a elucidar-nos sobre a existência, ou não, de relações familiares entre os níveis cristão e muçulmano. Noutro ponto da cidade, a nossa equipa escavou e musealizou as fundações de uma igreja de três naves sobre a qual foi construída uma mesquita almôada em meados do século XII. Nas imediações, a poucos metros de distância, foram descobertos dois grandes baptistérios de imersão e no exterior das muralhas da cidade uma outra igreja paleocristã e um monumental mausoléu ou martirium, todos construídos por altura do século VI e que parece terem estado ao culto muito para além do século VIII.
Todo este conjunto monumental paleocristão foi encontrado durante trinta anos de investigação arqueológica em que o objectivo inicial tinha sido a procura da civilização islâmica. É certo que também a encontramos, embora de uma forma pouco coincidente com a historiografia tradicional. O fenómeno da arabização e mais tarde da islamização é um processo que se estende ao longo de vários séculos, à medida que se estreitam as relações económicas e culturais com o Oriente mediterrânico, sobretudo com a Tunísia, Egipto e Pérsia. O extremar de posições religiosas e políticas coincide, em finais do século XI, com o expansionismo do cristianismo romano a partir do norte da Península e com as invasões almorávida e almôada que por sua vez introduzem na Península Ibérica um Islão mais ortodoxo e, de certa forma, mais intransigente. Apesar desse endurecimento, que coincide com o avanço para Sul das guerras da Reconquista, constatamos durante o século XII a existência em Mértola de um arrabalde cristão na zona portuária fora das muralhas. Se por um lado é iniciada uma nova forma de relacionamento entre as duas religiões, por outro não há dúvida de que se mantém um diálogo e mesmo um convívio só quebrado no século XVI com as expulsões de D. Manuel e logo a seguir com o poder acordado à Inquisição.
Por vezes estas novas formas de ver acontecimentos do passado, em que o que é certo passa a dubitativo, o que é aceite como irrevogável se torna pantanoso e mesmo contraditório - permitem compreender fenómenos do presente, abrir novas portas para a solução de conflitos que pareciam solidamente assentes em certezas absolutas.