Crise dos mísseis nucleares em Cuba foi há 60 anos: A radioativa caixa da Pandora

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Durante a Guerra Fria, vários presidentes americanos foram compelidos a ordenarem o uso de armas nucleares para porem termo a guerras. A Coreia, a China ou Cuba escaparam milagrosamente, ao arrepio das insistentes recomendações das chefias militares, a uma experimentação militar de consequências imprevisíveis. Qualquer destes episódios poderia ter sido o princípio do fim de grande parte da Humanidade.

Harry S. Truman, o presidente que autorizou as bombas atómicas em Hiroxima e Nagasaki, acabaria por negar o uso desse tipo de armamento na guerra da Coreia; Dwight D. Eisenhower contemplou a possibilidade do uso ofensivo de armas nucleares na guerra da Coreia e também contra bases militares na zona costeira chinesa, para proteger Taiwan, e John Kennedy impediu que a questão da presença das armas nucleares soviéticas em Cuba se transformasse na terceira, e porventura última, guerra mundial. Lyndon B. Johnson e Richard Nixon, politicamente asfixiados pela guerra do Vietname, nunca ponderaram seriamente o recurso a armas nucleares táticas. Em todos estes casos o "tabu nuclear" imperou.

A história do século XX regista a Crise dos Mísseis em Cuba como um dos períodos mais dramáticos da Guerra Fria. Numa arriscada manobra de prestidigitação geoestratégica, o líder soviético, Nikita Kruschev, conseguiu enviar secretamente para Cuba 40 000 homens e mísseis táticos, para além de mísseis de alcance médio e intermédio, capazes de atingirem várias cidades americanas, incluindo Washington e Nova Iorque.

Uma vez descoberta a manobra soviético-cubana pelo reconhecimento aéreo, durante 13 dias os responsáveis máximos do lado da Administração americana e do lado soviético tiveram o destino da Humanidade nas mãos. A "quarentena" naval imposta a Cuba por Kennedy - que achava a expressão "bloqueio" reminiscente da manobra soviética em Berlim - implicou uma tensão extrema entre Washington e Moscovo. Do lado americano, bombardeiros estratégicos B-52, voando em regime de 24/7, transportavam armas atómicas prontas a serem usadas. Em Cuba, os comandantes soviéticos, com autonomia operacional, tinham ordens para repelirem uma eventual invasão americana com armas nucleares táticas.

O episódio mais grave terá ocorrido quando os oficiais a bordo de um submarino soviético, alvo de cargas de profundidade desarmadas, por parte de um navio de guerra americano, ficaram sem comunicações com Moscovo. A bordo temia-se que a guerra tivesse eclodido. O comandante Vasili Arkhipov terá evitado uma catástrofe mundial, ao impedir que dois dos seus camaradas oficiais disparassem o torpedo nuclear que transportavam, sem conhecimento da restante tripulação.

No final de outubro de 1962, a racionalidade dos líderes americano e soviético prevaleceu e o mundo não chegou a ter conhecimento real do abismo que se abrira. Kruschev concordaria em retirar os mísseis de Cuba, em troca da retirada dos mísseis americanos da Turquia e Itália e a promessa de os EUA não invadirem Cuba. Ambas as partes salvaram a face num duelo estratégico de alta intensidade. O livro Thirteen Days, de Robert F. Kennedy, e The Kennedy Tapes, de Ernest R. May e Philips D. Zelikow, dão-nos uma imagem bastante realista desses dias ensombrados.

Décadas mais tarde, um ciclo de conferências em Havana reuniria alguns dos protagonistas da crise de 1962, incluindo Fidel Castro e o secretário de Estado Robert McNamara. Viria a revelar-se que em Washington nunca chegaram a saber da instalação de 98 mísseis nucleares táticos em Cuba, alguns na vizinhança da base militar americana em Guantánamo. De acordo com os relatos desses encontros, McNamara "ia caindo da cadeira". Os soviéticos também desconheciam que Kennedy tinha desistido de uma nova tentativa de invasão de Cuba, depois do desaire da Baía dos Porcos em abril de 1961.

Mas terá sido a Crise de Cuba a aproximação mais perigosa ao apocalipse nuclear? Na realidade, anos antes da crise de Cuba, em 1958, o espetro de uma guerra nuclear também terá estado iminente a Oriente.

Nesse ano, Mao Tsé-tung, que afirmara aos seus mentores soviéticos não ter medo de uma guerra nuclear com os EUA, decidiu bombardear as ilhas taiwanesas de Quemoy e Matsui, controladas pelas forças nacionalistas de Chiang Kai-shek e situadas a apenas meia dúzia de quilómetros da zona costeira chinesa.

O figurino do confronto sino-americano a propósito de Taiwan seria uma espécie de prelúdio da crise que se desencadearia, poucos anos depois, em Cuba. Neste caso, seriam os chineses a impor um bloqueio naval às ilhas de Quemoy e Matsui. Os americanos, com presença militar em Taiwan, incluindo mísseis nucleares Matador, equacionaram seriamente uma ofensiva nuclear contra a China, caso as ilhas controladas por Taiwan fossem invadidas - o que não veio a acontecer. Nessa época os EUA dispunham de bombas nucleares no Japão, Guam e Coreia do Sul. As bombas nucleares só chegariam a Taiwan em 1960, onde fariam parte do arsenal americano até 1974.

Em 1958, Pequim recuaria perante a ameaça nuclear americana, mas poucos anos mais tarde o Partido Comunista da China acusaria os soviéticos de aventureirismo em Cuba e de terem claudicado perante Washington.

Em 1957 um professor de Harvard, Henry Kissinger, defendia num livro da sua autoria, Nuclear Weapons and Foreign Policy, que o recurso às armas nucleares táticas nos campos de batalha fazia sentido e seriam úteis em algumas situações. Anos mais tarde, Kissinger mudaria de ideias quanto ao emprego desse tipo de armas por não conseguir medir as suas consequências, uma atitude que seria aplaudida pelo académico francês Raymond Aron, num estudo que também dedicaria à problemática da dissuasão nuclear.

No ano da Crise dos Mísseis em Cuba, em 1962, foi registado um número recorde de testes nucleares: 178. No ano anterior, a URSS tinha testado a "Bomba Czar", a maior e mais poderosa arma atómica detonada até hoje. Entre 1955 e 1989, realizaram-se em média 55 testes nucleares anuais. No final dos Anos 80 do século passado, os arsenais das principais potências dispunham de 60 000 armas nucleares. No auge da Guerra Fria, os EUA tinham 7300 armas nucleares estacionadas na Europa. Atualmente, nove países possuem cerca de 22 000 armas nucleares.

Em consequência dos acordos para a redução de armas nucleares após o fim da Guerra Fria, a Rússia aceitou reduzir em cerca de 75 por cento o seu arsenal de armas nucleares táticas. Mas como refere um documento da NATO, não houve fiscalização independente quanto a essa materialização. Em anos recentes, a Rússia voltou a instalar armas nucleares no teatro europeu. Também modernizou cerca de 80 por cento do seu arsenal nuclear estratégico. Paralelamente, desenvolve novos tipos de mísseis com capacidade nuclear de alcance estratégico - cruzeiro e hipersónicos, estes últimos de difícil rastreamento e interceção. De acordo com a NATO, os russos dispõem de 1500 a 2000 armas nucleares táticas em reserva.

Por outro lado, desde 2018 que estão instaladas na Europa cerca de 150 bombas nucleares de gravidade do tipo B-61 (fornecidas pelos EUA) em seis bases aéreas europeias e dos EUA, designadamente na Bélgica, Itália (2), Alemanha, Holanda e Turquia.

As armas nucleares deveriam ser uma relíquia da Guerra Fria. Até hoje, nenhuma potência nuclear optou por recorrer às armas mais potentes dos seus arsenais. Os conflitos envolvendo os EUA ou a URSS na Guerra Fria, mesmo implicando pesadas derrotas no terreno, foram travados com meios convencionais. A Índia e o Paquistão, duas potências nucleares, abstiveram-se de subir a parada nos seus conflitos armados.

"Talvez o problema estratégico básico na era nuclear seja como estabelecer a relação entre uma política de dissuasão e a estratégia para fazer uma guerra caso a dissuasão falhe." - resumiu Kissinger.

Em outubro de 1962 o mundo esteve à beira de uma guerra nuclear. Pela primeira e única vez, foi dado o alerta DEFCON 2 (15 minutos para o lançamento de mísseis nucleares). Mas, curiosamente, durante a crise em Cuba o relógio do Dia do Juízo Final (doomsday clock), uma criação simbólica da associação dos cientistas atómicos dos EUA, permaneceu nos 7 minutos para a meia-noite. Atualmente, o "relógio atómico" marca 100 segundos para a meia-noite...

Investigador em Relações Internacionais

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