Crise, dívida e um futuro digital. Os novos desafios do euro

Vai fazer 20 anos que Portugal disse um adeus definitivo ao escudo. A adoção da moeda única trouxe preços mais altos. Os rendimentos também subiram, mas menos. Depois de várias crises, o euro enfrenta desafios, incluindo o elevado endividamento de alguns países e a adaptação a um mundo cada vez mais digital.
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"Parafraseando Fernando Pessoa, primeiro estranha-se e depois entranha-se. No início, nos primeiros anos, as dificuldades das populações foram algumas, mas atualmente já quase todos esqueceram os "contos" e apenas pensam em euros". É desta forma que Paulo Rosa, economista sénior no Banco Carregosa, recorda a adaptação dos portugueses à moeda única europeia. O euro foi criado em 1 de janeiro de 1999. Foi nessa data que foram fixadas as taxas de câmbio entre as moedas dos países membros da União Europeia (UE). No dia 1 de janeiro de 2002, começaram a circular em Portugal - e em mais 11 Estados-membros da União Europeia (UE) - as notas e moedas de euro. Foi um marco que selou a União e integração europeia.

O escudo, a moeda lusa, ainda circulou em simultâneo com o euro durante dois meses. Mas a partir de março passaram apenas a ser usados euros. No dia 28 de fevereiro de 2022 completam-se 20 anos desde a retirada de circulação dos escudos. Jorge Sampaio era Presidente da República. António Guterres liderava o governo.

Habituar ao nome foi já de si um passo - dizer euros em vez de escudos ou contos. Mas o desafio foi os portugueses habituarem-se aos novos preços e valores. E aos arredondamentos. Cada euro corresponde a 200,482 escudos. Um café custava 80 escudos (40 cêntimos de euro), o litro de gasolina sem chumbo ficava por 92 cêntimos de euro. Hoje, um café custa 65 cêntimos. O litro de gasolina fica por 1,55 euros. O salário mínimo correspondia a 348 euros e o rendimento médio disponível das famílias era de 27,5 mil euros. Hoje, o salário mínimo está nos 665 euros e o rendimento médio dos agregados familiares em 35 mil euros. Em geral, do preço das refeições aos preços de entradas para cinema e espetáculos e tarifas de transportes públicos, os aumentos superaram a subida dos rendimentos. Aliás, só olhando para os últimos dez anos, foi uma década perdida em termos de paridade de poder de compra dos portugueses, face à média dos pares da UE. O Produto Interno Bruto (PIB) per capita, expresso em paridades de poder de compra, fixou-se em 79,2% da média da UE em 2019. Corresponde a uma ligeira melhoria face a 2018, mas está aquém do valor registado em 2009, de 83,1%, segundo o Instituto Nacional de Estatística.
Duas décadas depois, a zona euro está mais alargada e agrega 19 Estados-membros e abrange mais de 341 milhões de pessoas.

Com o euro, os países tiveram de se adaptar. "A inflação e as taxas de juro baixaram significativamente para os países do sul da Europa, que passaram a ser suportados, em parte, pelos bons fundamentais das economias do norte da Europa, nomeadamente da Alemanha", lembra Paulo Rosa. Isto, porque "as taxas de juro de curto prazo, e indiretamente as de longo prazo, passaram a ser influenciadas pela política monetária do Banco Central Europeu (BCE) de estabilidade de preços". Portugal passou a beneficiar de preços das importações estáveis.

Mas o euro trouxe outras consequências. "Com a introdução do euro e o abdicar da soberania sobre a oferta de moeda, países como Portugal deixaram de poder contrabalançar crises orçamentais com emissão de moeda e, como tal, deixaram de criar inflação mais elevada como alternativa para resolver esses tipos de problemas", diz Nuno Sousa Pereira, diretor de Investimentos da gestora de ativos Sixty Degrees.

Em geral, o lançamento do euro trouxe também "fortes expectativas sobre a possibilidade de criação de uma alternativa ao dólar enquanto moeda de reserva", recorda Nuno Sousa Pereira. Mas acabou por ser "algo que não se materializou em virtude da falta de mutualização da dívida dos vários Estados-membros".

Antes do euro, "o marco alemão era a segunda moeda mais importante a nível global e representava cerca de 20% das reservas dos bancos centrais mundiais, enquanto o dólar representava à volta de 70%", salienta Paulo Rosa. Desde a criação do euro até 2008, a moeda única passou a representar cerca de 30% das reservas dos bancos centrais e o dólar desceu para 60%, frisa. "Sempre que existiu uma perceção de integração europeia, como de 2000 a 2008, o euro valorizou face ao dólar", apontou o economista.

Mas, como salienta Nuno Sousa Pereira, ao valorizar-se até 2008, especialmente face ao dólar norte-americano - chegou a cotar a 1,60 em agosto -, criou problemas reais às economias mais frágeis, como Portugal". Isto porque "o peso da dívida em moeda forte e respetivo modelo económico, desenvolvido em torno da competitividade dos custos de produção e não da produtividade e valor tecnológico, criaram uma situação de contágio na zona euro que acabaram por colocar a região sobre pressão e criando uma desvalorização significativa - atualmente a cotar a cerca de 1,13 face ao dólar".

O caminho do euro não tem decorrido sem alguns percalços. "O projeto da moeda única europeia tem sido feito por avanços e recuos", sublinha Paulo Rosa. Em algumas alturas houve mais confiança no projeto europeu do que noutras. Os spreads entre "as taxas de juro da europa meridional e as do norte da Europa eram muito pequenos no período que mediou a criação da moeda única até à crise financeira de 2008/09". Nesse período, "havia confiança no projeto europeu e uma perceção de coesão e integração europeia por parte dos investidores". Mas o advento da grande recessão de 2008/09 "trouxe consigo o gradual aumento das disparidades das contas públicas entre os diferentes países membros da moeda única". Consequentemente, "os investidores perceberam e percecionaram esse recuo na integração europeia e refugiaram-se nas obrigações e na dívida pública com melhores fundamentais", como a dívida alemã. Esse facto implicou o resgate financeiro de vários países, designadamente da Grécia e Portugal. Desde 2015, a política do BCE "criou uma convergência artificial das rentabilidades, através do programa de compra de ativos". "Os investidores voltaram a acreditar e apostar no projeto europeu", frisa.

Com a crise gerada pelas medidas adotadas no âmbito da gestão da pandemia de covid-19, surgiu "algum receio de recuo na integração, mas no início do verão de 2020, o BCE criou um novo incentivo de compra de ativos, o PEPP, que ajudou a mitigar as contas públicas dos países mais atingidos, como a Itália, e aliviar as contas públicas de países mais debilitados como Portugal, Espanha e Grécia, penalizados pelo recuo do turismo". "A verdade é que, sem o BCE, o sul da Europa dificilmente consegue convergir com o Norte da Europa", nota. "O Banco central da zona euro é o cimento agregador da frágil integração europeia. O BCE tem conseguido fazer pela Europa aquilo que os governos dos Estados-membros por vezes se recusam a realizar", aponta.

Segundo o economista do Banco Carregosa, "os governos dos países com contas públicas mais frágeis têm tido dificuldades com os ajustamentos orçamentais e das dívidas públicas, apesar de o BCE lhes estar a comprar tempo para colocarem as contas públicas em ordem". O elevado endividamento de alguns países é um dos calcanhares de Aquiles do euro.
Para o diretor da Sixty Degrees, "o euro enfrenta uma crise existencial em função do pecado original na sua criação". "Acresce também alguma falta de harmonização fiscal, laboral e social entre os vários países da zona euro. Tudo isto cria desequilíbrios que podem vir a atingir a credibilidade da moeda e feri-la de morte", alerta, lembrando o caso do contágio da dívida dos países periféricos que obrigou o BCE a adotar medidas extraordinárias. "Nesse sentido, o BCE vê com bons olhos o projeto de uma moeda digital e poderá mesmo ser a próxima instituição a lançar o seu projeto", frisou.

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