Crimes de Guerra

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Um documento autêntico descreve os seguintes acontecimentos. Uma coluna de soldados, comandados por um oficial, entra numa aldeia. Na coluna seguem também dois responsáveis civis nomeados pela potência invasora. Os dois responsáveis civis falam com o chefe da aldeia. O oficial ordena que toda a população seja reunida num largo em frente das casas. Com o apoio de um dos responsáveis civis são identificados cinco indivíduos que supostamente teriam participado numa "confusão" contra outros ocupantes. Depois de um breve interrogatório o oficial ordena o fuzilamento, sem julgamento e sem defesa, dos cinco indivíduos identificados. Depois de mortos as suas cabeças foram cortadas e espetadas em estacas. A coluna retira-se e dirige-se a outra aldeia. O documento, muito detalhado e preciso, é assinado pelo oficial responsável e dirigido aos seus superiores hierárquicos.

Este crime de guerra, não foi cometido pelos russos na Ucrânia, nem pelos ucranianos contra a minoria étnica russa, não foi sequer cometido na Europa embora o oficial e os soldados que ali intervieram fossem europeus. Os criminosos não foram julgados por tribunais internacionais ou simplesmente nacionais. O caso, apesar de conhecido, não foi divulgado e a imprensa não pode, por conseguinte, denunciá-lo.

Quem então cometeu este horrendo crime de guerra? Como sabemos dele? O crime foi cometido pelas tropas coloniais portuguesas em Angola, mais precisamente em 1961 na sanzala de Mihinjo e vem relatada no livro O Império Colonial em Questão, um livro organizado por Miguel Bandeira Jerónimo, um dos mais conceituados académicos portugueses, doutorado pelo Kings College London, uma das mais prestigiadas instituições universitárias britânicas. O autor do estudo sobre este crime é António Araújo, Doutorado em História pela Universidade Católica Portuguesa. A fonte do relato é um relatório militar que conta pormenorizadamente o sucedido e que está depositado no Arquivo da PIDE da Torre do Tombo. O livro foi editado em 2012, há mais de 10 anos, não tendo suscitado qualquer reação pública das autoridades portuguesas.

Um crime não lava outro. Os crimes cometidos pelas tropas na Ucrânia devem ser identificados, investigados e os seus perpetradores levados a tribunal independente com garantias de defesa. Os criminosos devem ser severamente punidos. São crimes chocantes que têm de ser esclarecidos e apuradas responsabilidades. A Justiça reclama-o. A Humanidade exige-o.

Mas também choca que quem tem as mãos tintas de sangue, que nada fez para julgar os criminosos que em nome do regime colonial português cometeram atrocidades em África, possa agora clamar hipocritamente contra terceiros.

A Justiça e a Verdade começam por nós mesmos. Se as esquecemos, se as ignoramos, com que autoridade moral as exigimos dos outros?

Louvamos a atitude de António Araújo que tão corajosamente analisa este episódio de um ponto de vista neutro e minucioso, expondo os factos aí descritos e publicando o próprio relatório no fim do seu texto para que nenhuma dúvida subsista. Uma atitude científica de grande dignidade, dando a conhecer acontecimentos que se não integram na grande narrativa colonial ainda em vigor e, abrindo caminhos para uma reavaliação dessa saga à luz de todos os factos e não só de um leque muito selecionado que conta uma história cor-de-rosa.

Um livro que, infelizmente, passou despercebido do grande público mas que urge conhecer.

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