Crime e castigo
Tem sido um ano de maciços e prolongados protestos espalhados pelo mundo. Da Rússia ao Zimbabwe, do Sudão à Sérvia, do Brasil à Etiópia, da Venezuela à França, do Reino Unido ao Líbano, do Equador ao Uganda, de Espanha à Argélia, do Egito à Indonésia, de Hong Kong ao Chile, milhões e milhões de pessoas passaram para as ruas angústias privadas, raiva contra governações corruptas e nepotistas, modelos económicos falidos, regimes castradores das liberdades ou usurpadores de direitos elementares. Não há um motivo isolado que explique esta explosão popular e os contextos nacionais ou regionais vão acomodando a durabilidade das contestações. Apesar das singularidades, vale a pena ensaiar uma grelha de explicações para o momento de sobressalto global que se vai vivendo.
O primeiro argumento relaciona a capacidade de mobilização, o levantamento rápido de informação e a dispersão de mensagens antipoder. Esta trilogia só é possível num quadro de múltiplas ferramentas online, fragmentadas na sua origem mas produtoras dos mesmos efeitos. O maior deles é a desconstrução avassaladora das torres de marfim em que tantas elites políticas e económicas, quando não militares, teimam em enclausurar-se.
Ao contrário de há vinte anos, para não ir mais longe, é hoje uma completa ilusão pensar-se que um cidadão comum não consegue ter acesso a informações sobre indícios e factos à margem da lei praticados pelo topo da pirâmide, tradicionalmente também ela depositária da grande fatia da riqueza nacional. E mesmo que os tais indícios e factos não sejam suficientes para alimentar uma revolta, não faltam teorias da conspiração e oráculos encartados do antissistema para criar uma atmosfera imparável. Alguns trepam até ao poder, outros não têm talento para isso. O problema, na origem, está lá: regimes, partidos e elites que se consideram acima da lei e da transparência. Nesta era do big data e da digitalização da globalização, ou se é efetivamente transparente numa conduta ética impoluta, ou dificilmente se escapa ao crivo das massas.
O segundo argumento relaciona os efeitos diretos dos preços das commodities à volatilidade incontrolável do custo de vida. Dos preços dos transportes à estagnação salarial das classes baixas e médias, das cargas fiscais à qualidade dos serviços públicos, da transformação tecnológica no mercado laboral à conciliação com as boas práticas ambientais e de acomodação de uma vida privada cada vez mais valorizada, até às receitas únicas das instituições multilaterais na gestão de crises, passando pela extrema obscenidade dos triliões em offshores a dar cabo diariamente de qualquer noção de justiça fiscal e saúde das democracias, tudo vai ajudando a fazer saltar a tampa das sociedades.
Não é preciso partilhar o que quer que seja com os populistas de algibeira que vão nascendo como cogumelos para fazer um diagnóstico alarmista a montante e a jusante destes problemas. Escondê-los por razões eleitorais - quando os países em causa têm eleições - não é sustentável; protelar decisões tem o risco que qualquer ato de fé carrega; e tomar as decisões de forma negligente é hoje politicamente injustificável: nunca a formulação de políticas públicas racionais, sensatas, previdentes e sustentáveis teve tanta informação, comparação e resultados acumulados como hoje. A globalização da informação não pode só servir para alimentar protestos a essa escala, tem de ser igualmente fonte cuidada dos melhores processos de decisão. Não há desculpa. Só incompetência, preguiça e irresponsabilidade.
O terceiro argumento encaixa aqui. A crítica não pode ser feita isoladamente a uma tipologia de decisores políticos ou económicos, nem sequer a um ou a outro Estado. A complexidade e a velocidade dos fluxos financeiros, energéticos, comerciais, logísticos e migratórios é de tal monta, que só a níveis de sofisticada coordenação interestatal ou mesmo supranacional podem ser deslindadas as soluções mais sustentáveis para tantos dilemas que a globalização está a trazer às ruas e às praças das principais cidades da América Latina, da Europa, de África ou da Ásia.
Este é o tempo da erosão das organizações internacionais, dos mecanismos multilaterais, da vontade dos homens fortes em destruir os instrumentos de negociação pactada para privilegiar a lógica do bilateralismo com os mais fracos, sempre com o objetivo de trazer uma vitória para casa que alimente a falange, a trincheira ideológica onde habitam. A tentativa de destruição de espaços de integração política ou comercial encaixa como uma luva nessa lógica de ampliação de poder, tal como cria uma atmosfera onde o livre-arbítrio das ações se sobrepõe às regras das convenções, dos tratados ou dos estatutos orientadores dessas organizações.
É neste quadro de transformação da ordem internacional, tendencialmente menos multilateral, orgânico e concertado, ainda por cima alimentado agora por Estados que sustentaram durante décadas exatamente o caminho oposto, que a complexidade dos problemas globais está a ser olhada: não pelo prisma da coordenação multilateral, mas do choque entre grandes potências para obtenção de resultados individuais a curto prazo. O ângulo pode ainda descer mais uns níveis, se tivermos em atenção que muitos desses resultados não dizem apenas respeito a Estados, mas a partidos sistémicos ou mesmo a grupos dentro desses mesmos partidos. O nacionalismo é, sob este ponto de vista, absolutamente vertical.
A magnitude dos protestos globais transfere para as ruas o que devia ser discutido, atacado e solucionado em organizações regionais, pelos métodos de negociação multilateral e através dos compromissos assumidos pelos Estados. Quando tudo isto está em decadência, erosão ou é letra morta, a instabilidade permanente passa a ser a regra na política - até esta ser substituída por outra coisa qualquer, normalmente trágica.
Investigador universitário