Depois de San Sebastián, Paris. Novo destino para Woody Allen filmar os seus complexos contos de falha humana. Em Golpe de Sorte está mais negro e amargo do que o habitual, quase ao nível da negritude de Match Point. Filme de um cineasta sem nada a perder e que se deu bem com a capa de "cinema francês" (a língua de Moliére fica bem ao seu método de escrita), mesmo sendo genuinamente igual a si próprio. O cineasta americano que estará para a semana em Lisboa veio a Veneza apresentar este que pode ser o seu derradeiro filme depois de tanta pressão da cultura do cancelamento, algo que já disse numa recente entrevista ser "uma coisa tola". Os jornalistas presentes às 8h30 da manhã na sessão da imprensa devem concordar atendendo ao entusiasmo com que esta história de crime e ciúme foi recebida na Sala Grande do Palácio do Lido. Na verdade, Coup de Chance é um dos melhores filmes aqui mostrados fora-de-competição, uma belíssima reabilitação face ao anterior Rifkin"s Festival..Centrado em Paris, esta 50.ª realização de Allen pergunta se o acaso e a sorte se fabricam. É logo na primeira cena que dois colegas de liceu se encontram numa avenida de Paris. Ele é Alain (Nils Schneider), escritor divorciado, e ela é Fanny (Lou de Laâge), jovem mal casada com um investidor de caráter duvidoso, o vaidoso Jean (Melvil Poupaud, de novo em majestoso plano). Depois de alguns posteriores encontros, acabam por se envolver numa paixão que leva Fanny a pensar em terminar o casamento, mas quando Jean descobre, a via do crime torna-se uma opção..A primeira coisa que salta à vista aqui é a luz de Vittorio Storaro, a filmar uma Paris outonal em tons dourados. Uma direção de fotografia que dá uma plasticidade dramática a um filme que sabe ser sempre inquietante na maneira como explora a fraqueza humana. Todos aqui neste relato de adultério e assassinato são culpados numa pintura que está fascinada pelo luxo dos apartamentos, restaurantes e locais de Paris, mas sobretudo por uma ideia de sujidade moral de uma alta sociedade francesa mesquinha e fútil. Por muito que se descortine aquele humor de Woody Allen, Golpe de Sorte será sempre daqueles seus filmes da coleção da afrontação com o lado negro humano, não dispensando um jogo de suspense que evoca sem problemas Hitchcock..Acima de tudo, a mundivisão de Woody Allen está ancorada no espaço do detalhe e torna-se num privilégio supremo sermos testemunhas do prazer do cineasta em se divertir (e com isso, também o espectador) com a malícia dos pequenos jogos e sinais. Depois de todos os ataques do qual foi alvo, este é um trabalho com uma unidade sacramental de ajuste de contas, pronto a lembrar que ele é um dos cineastas americanos que melhor encena a assombração da falta de carácter nos homens..Pena que na competição tenha surgido uma das maiores deceções da Mostra, Priscilla, de Sofia Coppola, a história de como uma jovem adolescente conheceu no final dos anos 1950 o maior mito da música americana e, posteriormente, se tornou na noiva da América..Baseado no livro das memórias de Priscilla Presley, este é uma espécie de Marie-Antoniette levado para a realidade de Graceland. Pastoso e sem novidade, é sobretudo uma sucessão de provas de abuso psicológico e físico de Elvis sobre uma miúda que se tornou mulher. É claro que é sempre vistoso com a suave dose de bom gosto visual da circulação do estilo da realizadora. Uma Sofia Coppola que quis fazer este filme para mostrar que sempre se sentiu destinada a lutar contra o preconceito de ser vista como a "filha de" (neste caso de Francis Ford), tal como Priscilla, "a mulher de". Estará aqui o seu pior filme?.Ainda na competição, vénias para Ryûsuke Hamaguchi e o seu Evil Does Not Exist, a partir da música de Eiko Ishibashi, compositora que já tinha colaborado com o cineasta japonês. Aliás, este filme existe a partir de um trabalho para uma performance da compositora, tendo depois Hamaguchi se interessado em explorar uma história sobre uma tragédia numa comunidade rural japonesa ameaçada pela caça ao veado e a especulação turística dos glampings..Longe de ser um panfleto ambientalista, trata-se de um olhar imersivo sobre homem e Natureza, mas é sempre mais vital quando explora o oposto entre os seres da cidade e os da montanha. Depois de Drive My Car, o japonês continuará com a sua reputação em altas, mesmo este sendo um objeto bem mais radical e complexo..De referir ainda a boa receção a The Caine Mutiny Court Martial, do recentemente falecido William Friedkin, um filme de tribunal passado 95% durante um julgamento, nada a ver com Os Revoltados do Caine (1956), de Edward Dimytryk. Um objeto que atualiza o motim de um navio da marinha americana para o atual contexto do Golfo e é feroz na sua crença no poder dramático da palavra. Filme de "velha escola" sem fazer concessões, está já garantido para Portugal. E tem a interpretação da vida de Kiefer Sutherland..dnot@dn.pt