Crianças vítimas do 'Katrina' têm medo de tomar banho e da água da chuva
Cada vez que Monica entra na banheira pensa que se vai afogar. A choradeira começa antes mesmo de a avó abrir a torneira e de a menina de três anos sentir a água a subir-lhe lentamente pelas pernas. "Eu digo- -lhe para não chorar, que tenho de lhe lavar o cabelo, mas não adianta", contou a avó, Ruth May Smith, citada pela CNN. Não adianta também a avó garantir-lhe que não vai deixar que nada de mal lhe aconteça: Monica aprendeu muito nova que nem sempre pode contar com aqueles que a amam.
Monica estava em casa, na zona costeira dos Estados Unidos, quando, a 29 de Agosto de 2005, uma enorme onda, provocada pelo furacão Katrina, desabou sobre a habitação, destruindo o telhado e as paredes. Ficou presa lá dentro com a avó e duas tias. Nenhuma delas sabia nadar. A menina chegou a estar submersa e ter-se-ia afundado se um vizinho não a tivesse recolhido.
Cerca de 1,2 milhões de crianças e jovens com menos de 18 anos viviam na região afectada pelo Katrina. Estima-se que pelo menos 8% (ou seja, cem mil crianças) desenvolvam stress pós-traumático. Mas a taxa pode ser bastante mais elevada. Das mil crianças até agora observadas pelos técnicos do Departamento de Ciências da Saúde da Universidade Estatal de Luisiana, 27% tinham sintomas de trauma, incluindo pesadelos, flashbacks, ansiedade e enurese nocturna, revelou Joy Osofsky, professor de pediatria e psiquiatria. Dificuldades na aprendizagem, problemas de comportamento, depressões, tendências suicidas são alguns dos sintomas associados ao stress pós-traumático que se podem revelar muitos anos após a experiência.
As conclusões de um estudo realizado pela Escola de Saúde Pública da Universidade de Columbia também são pouco animadoras: as 650 famílias estudadas continuam a morar em habitações precárias da FEMA (Federal Emergency Management Agency), com poucas condições e sem apoios, quase metade não tem seguro de saúde e um quinto das crianças não frequenta a escola. Se ninguém se preocupa com as suas condições de vida, quem vai ocupar-se da sua saúde mental?
"Que as necessidades das crianças vítimas do Katrina tenham sido negligenciadas é um escândalo moral e a longo prazo será um desastre", afirmou no início do mês um relatório assinado por Marian Wright Edelman, presidente da Fundação para Defesa das Crianças, no qual se pedia apoio psiquiátrico urgente para estas vítimas.
As crianças não reagem todas da mesma maneira. Mas oito meses depois do Katrina é possível identificar já alguns padrões de comportamento. Por exemplo, para os adolescentes a depressão agrava-se à medida que se apercebem de que vai demorar alguns anos até que possam regressar às suas antigas casas - se é que isso vai acontecer algum dia.
Os mais pequenos, que estão na escola primária, sentem a perda dos seus brinquedos preferidos. "Quando se perde o urso de peluche favorito perde-se muito mais do que um simples brinquedo", afirma o pedopsiquiatra Claude Chemtob.
Aprendida a lição, depois da tempestade, Michael Watts, de seis anos, decidiu prevenir-se. Guardou os seus tesouros numa mala - um Bat-man, um GameBoy, a sua colecção de bonecos Hulk - que carrega para a escola, para restaurantes, para todo o lado. Quando a mãe lhe diz que tem de acabar com aquilo, Michael desarma-a perguntando: "E se houver outro furacão?" Frequentemente, as crianças desta idade enfrentam pesadelos e a sua ansiedade revela-se através de sintomas físicos, como dores de barriga.
Já as crianças com menos de seis anos viram abalada a confiança que tinham nos pais. Nestes casos, é comum terem comportamentos regressivos, voltando a pedir colo, a chuchar no dedo e a fazer chichi na cama. "Casas destruídas com um sopro é algo que só é suposto acontecer em contos de fadas [como na história dos Três Porquinhos] . Agora, elas acham que tudo pode acontecer", explica a psicóloga Lynne Rubin, que deu apoio a crianças após o 11 de Setembro.
A mãe de Gabrielle Rilley, de oito anos, morreu com uma pneumonia quando era evacuada. Desde então, quando o pai vai dormir a sesta, Gabrielle fica a rondar o quarto e até abre a porta cuidadosamente só para ver se ele está bem. Breanna, de cinco anos, chora desesperada quando a mãe se afasta. É difícil acalmar uma criança que viu árvores a caírem mesmo ao pé de casa. "Parecia o barulho de um monstro", diz a miúda, que, ainda hoje, sempre que chove, se esconde debaixo da mesa.
"A crise é previsível e muito do seu impacto pode ser prevenido", afirma Bruce Perry, da Academia de Crianças Traumatizadas. "Mas a nossa sociedade pode não ter a inteligência de perceber que a verdadeira crise do Katrina são as centenas de milhares de crianças destroçadas, desalojadas e traumatizadas."