Criação artística e IA. O desafio de separar o que é do homem e da máquina

Nos últimos anos, o mundo digital, nomeadamente a Inteligência Artificial (IA), trouxe novos desafios à identificação e proteção do criador artístico. Como forma de debater a questão, o segundo momento das Novas Conferências do Casino deteve-se no tema "A Salvação pela Arte? - A Criação Artística e a Inteligência Artificial". A arte é o meio singular através do qual os humanos comunicam entre si. Haverá espaço para acomodar a máquina?
Publicado a

Edmond de Belamy olha-nos a partir de uma tela. O francês do século XIX surge-nos representado difuso, esboroado numa paleta de tonalidades turvas e pastel. Em 2018, a pintura foi vendida por 432 mil dólares na leiloeira Christie"s. No canto inferior direito do trabalho vemos a assinatura do autor. Assina-a um algoritmo. Edmond de Belamy não é "filho" das pinceladas de um inspirado humano de um século pretérito. Nasceu dos meandros de um algoritmo gerado pelo GAN (Generative Adversarial Networks). O gerador de imagens inventado por Ian Goodfellow treinara com 15 mil retratos pintados entre o século XIV e o século XX. A obra, foi apresentada pelo coletivo francês Obvious. O nome Belamy homenageia o criador do GAN. Na língua gaulesa "bel ami" significa "bom amigo", trocadilho traduzido de Goodfellow. Dois anos antes, em 2016, fora dado a conhecer o "novo Rembrandt", uma pintura realizada em impressora 3D, resultado de uma parceria que envolveu a Microsoft, a Universidade de Delft e dois museus holandeses. Uma vez mais atuara a Inteligência Artificial.

Os exemplos de Edmond de Belamy e do "novo Rembrandt" são ilustrativos do tema que animou o segundo ato, a 22 de junho, do ciclo Novas Conferências do Casino, uma organização do Círculo Eça de Queiroz, Grémio Literário e Centro Nacional de Cultura. "A Salvação pela Arte? - A Criação Artística e a Inteligência Artificial (IA)", contou com os contributos de três oradores, Arlindo Oliveira, José de Guimarães e Massimo Sterpi.

O mote para o momento de reflexão fora antes dado na síntese à conferência que reuniu perto de uma centena de participantes: "Debater a criação artística no contexto atual num momento em que se configuram novos desafios colocados pela Inteligência Artificial, com a possibilidade cada vez mais próxima dos algoritmos virem a dispensar o contributo dos humanos para o exercício de uma das mais nobres evidências do valor da vida".

Arlindo Oliveira, professor do Instituto Superior Técnico, presidente do Instituto de Sistemas e Computadores e administrador da Caixa Geral de Depósitos, é autor de vários livros e centenas de artigos científicos e de divulgação, nas áreas dos algoritmos, inteligência artificial, arquitetura de computadores e biologia computacional. À plateia reunida no Museu Nacional de Arte Antiga, o pensador levou uma questão: "Poderão os computadores criar arte? O problema não é novo. A pergunta foi colocada pela primeira vez em 1843, por Augusta Ada Lovelace". Filha do poeta Lord Byron, reconhecida por ter escrito o primeiro algoritmo, "Lovelace respondeu à pergunta concluindo que "não", pois os computadores obedecem a algoritmos. O que disse é verdade", sublinhou Arlindo Oliveira, para avançar na sua intervenção perto de um século aproximando-se do trabalho do cientista de computação Alan Turing que não concordava com as conclusões de Lovelace.

"O que no passado se situava no campo de investigadores na área da IA, agora está acessível a todos nós". A sublinhar esta afirmação, Arlindo Oliveira apresentou vários exemplos recentes de obras artísticas criadas com recurso a algoritmos, como o quadro de 2022, intitulado Théâtre d"Opéra Spatial, criado por Jason M. Allen, vencedor de um prémio no Colorado. Mais recente, a polémica estalou em 2023, com a fotografia Pseudomnesia, submetida ao concurso Sony World Photography Awards pelo fotojornalista Boris Eldagsen. A participação sagrou-se vencedora numa das categorias. A cumplicidade entre mãe e filha exposta em Pseudomnesia nascera da IA, com memórias falsas de um passado que não existiu. Boris recusou o prémio. Por seu turno, Jason M. Allen, aceitou o prémio. Em ambas as situações, instalou-se o debate.

"Até que ponto as obras de arte criadas por um computador se podem tornar indistinguíveis daquelas criadas por humanos? Se tivermos máquinas que genuinamente criam conteúdos artísticos, por exemplo com a criação de uma nova escola artística, isso retirará valor à arte e aos artistas?", questionou Arlindo Oliveira, para continuar, "assumamos que dentro de dez anos teremos máquinas capazes de fazer isto. O facto de existirem automóveis não fez desaparecer o atletismo. Não vejo porque as máquinas retirariam valor à arte. Depende de nós enquanto sociedade, se vamos continuar a dar valor à criação artística humana".

José de Guimarães, artista plástico português, afastou a sua intervenção do território do digital e dos algoritmos para enveredar na criação artística e no que esta acarreta de desafio à sensibilidade e inteligência humanas. "O artista sente-se um mágico quando está perante uma tela a partir do zero", sublinhou o interveniente na conferência, numa alusão ao território palpável e sensível que move o artista, afastado dos meandros da máquina.

José de Guimarães recordou a sua estadia em Angola ainda na década de 1960, país para "onde parti em comissão de serviço militar". Recordou o "contacto com o então Museu de Angola [Luanda]" e de como forjou "uma mudança na estrutura do meu pensamento. O primeiro contacto foi angustiante. Prolongou-se por dois anos difíceis. Com a ajuda de amigos etnólogos permitiu-me estudar a arte angolana". A presença em África tornou-se, para José de Guimarães, um vetor determinante na definição do seu vocabulário artístico. "A partir de 1970, na posse de conhecimentos de arte tribal, ideei um alfabeto ideográfico com cerca de 140 símbolos. Da sua combinação de elementos nasciam histórias". O trabalho do artista nado em 1939 define-se pela descoberta das culturas africana, japonesa, mexicana e chinesa, num estímulo ao desenvolvimento de uma linguagem universal. "Propus-me construir um mapa mundo com obras de vários continentes", sublinhou o autor com trabalhos representados em relevantes coleções institucionais em Portugal e um pouco por todo o mundo, com especial incidência no Japão e Alemanha.

Coube ao italiano Massimo Sterpi, associado de Gianni & Origoni, empresa transalpina de advocacia, "interligar as duas apresentações anteriores. O que é a arte generativa? A IA, que procura imitar o que os humanos criam faz isso, num processo de simulação do desempenho humano. Na fase presente, trata-se mais de simular os resultados. Ou seja, tentar criar alguma coisa que seja percecionada como humana", adiantou. Sterpi apresentou, para além dos dois exemplos descritos no início do presente artigo, alguns episódios históricos de tentativa de criação artística pela máquina: Na década de 1970, com o artista britânico Harold Cohen e o seu programa AARON e, já no presente século, com o artista alemão Mario Klingemann e o seu trabalho a envolver redes neurais, código e algoritmos, capaz de, a partir de uma base de dados, criar rostos humanos que não se baseiam em imagens pré-existentes; ou o trabalho do artista multimédia grego Miltos Manetas, que projeta imagens criadas com recurso a IA e pinta sobre estas.

"O mais interessante é que estamos com a máquina a tentar superar os humanos", sublinhou Massimo Sterpi que, tal como Arlindo Oliveira, deixou algumas perguntas à reflexão: "Quem faz o quê? É a máquina que faz? É o Homem? Estão estes trabalhos abrangidos pelos direitos de autor?" O também presidente do Comité de Direito das Artes da União Internacional dos Advogados recordou que "há duas entidades no processo, o Homem e a Máquina. A sua interação não é sempre a mesma e nem sempre é clara". Sterpi definiu os papéis de cada uma destas entidades: "o ser humano dá instruções a uma inteligência artificial para criar algo; seleciona os resultados, intitula-os, o que lhe confere "alma" e escolhe o produto final. À máquina, compete-lhe o acesso às bases de dados, tem um período de treino do algoritmo com intervenção do humano e, finalmente, o processo de elaboração do conteúdo". No que respeita à lei que protege os autores, o advogado italiano traçou a fronteira entre "a abordagem continental, aquela que protege o direito de autor e uma outra abordagem anglo-saxónica, a que protege o esforço, o investimento para chegar a determinado resultado. No caso da perspetiva continental, diria a francesa, a legislação protege aquilo que definimos como imagem com alma. No caso do direito anglo-saxónico, a legislação não diz que o computador é o autor, mas, mais do que isso, quer recompensar o investimento. O autor será aquele que foi essencial para a criação do trabalho [por exemplo o criador do algoritmo]. Não é fácil decidir na prática quem é o autor. Muitas vezes existem várias pessoas com papel na criação".

O ciclo de Novas Conferências do Casino prossegue a 19 de julho com "O futuro da União Europeia", com a participação do antigo comissário europeu, o francês Pascal Lamy.

dnot@dn.pt

Diário de Notícias
www.dn.pt