Cozinhar é complicado, mas a vida do Carlitos ficou mais fácil

Apartamentos de apoio à independência geridos pela Fundação O Século já ajudaram 15 jovens institucionalizados a entrar na vida adulta
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"A vida é complicada, temos de nos manter firmes nesta longa caminhada." Os versos da música Longa Caminhada, de Carlos Vieira, podiam muito bem ser o espelho da sua vida, embora o jovem garanta que são apenas ideias "à toa" que lhe surgem. Aos 19 anos, Carlos (ou Carlitos, para quem o conhece há muito) está há um mês a viver sozinho, fora de uma instituição de acolhimento. O que acontece pela primeira vez desde que aos 4 anos entrou na Casa das Conchas, da Fundação O Século.

Partilha a casa com Francisco e enfrenta já os desafios de não ter a cantina do lar onde vivia ou quem o acorde a horas. Garante: "Cozinhar é complicado, porque antes tinha a comida feita, mas a minha vida ficou mais fácil."

Sair da instituição era um pedido feito há muito por Carlos. O problema é que nem todos os jovens institucionalizados na Fundação O Século podem integrar os apartamentos de autonomização e só agora abriu um apartamento para rapazes. "Lá [na instituição] vivem muitos miúdos e já não me identificava com isso", refere o rapper Bee Dji, nome artístico que adotou para apresentar as suas músicas no YouTube, onde tem vídeos com mais de 30 mil visualizações.

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"Há muito tempo que queria vir para aqui, já desde os 16 anos. Tinha a hipótese de ir para a casa da minha mãe, mas aqui estou mais à vontade", conta. Apesar de viver na instituição, Carlitos mantém contacto com a mãe e o irmão mais velho, que também esteve na fundação, até ir viver com ela. Os dois irmãos estavam entre o grupo de crianças guineenses que foram retiradas de outra instituição em 2001, pela Segurança Social. Passaram toda a vida n"O Século e estão a dar os primeiros passos rumo à independência.

Agora num apartamento completamente integrado na comunidade e sem identificação exterior, Carlos sente-se mais dono de si. A casa, um T3, na Parede, foi cedida pela autarquia e remodelada com recurso a móveis doados ou da fundação. Foi inaugurada em julho, mas só há um mês recebeu os primeiros inquilinos.

Uma das regras da casa é que não há máquina de lavar a loiça, mas Carlos não se queixa. A cozinha ainda é terreno a desbravar. Porém, os conhecimentos já permitem que se faça uma carbonara, a especialidade da casa.

Carlos fala perante o olhar atento e orgulhoso de Joana Louro, a diretora das Casas da Ponte - há três apartamentos deste tipo ligados a O Século, dois para raparigas e agora este para rapazes -, que sublinha a necessidade de os jovens cumprirem regras para se manterem nas casas. Entre elas estão não levar namoradas para casa e não consumir drogas ou álcool.

Ter um projeto de vida - Carlos frequenta o 11.º ano em Marketing, mas quer ser cabeleireiro -, ser independente e responsável são outros dos atributos. São sujeitos a uma medida de acolhimento e recebem um apoio financeiro com o qual aprender a gerir a sua autonomia. "Recebem 419 euros, mas têm de pagar uma renda simbólica, com todas as despesas incluídas, e depois daí têm de fazer as compras de supermercado, comprar medicamentos se for preciso, jantares e almoços com amigos. Tudo sai desse orçamento", explica a psicóloga Joana Louro, que acompanha semanalmente a evolução dos jovens e faz ainda visitas surpresa.

A gestão do dinheiro não é difícil para Carlitos. Além do apoio financeiro, trabalha ao fim de semana no Burger King. É deste extra que tira dinheiro para gravar os seus videoclips. "Só gravo quando tenho dinheiro", alerta, perante o anúncio de que é um artista do YouTube.

Escreve desde os 15 anos e canta só em português. "É a língua que sei falar bem, não ia agora cantar em inglês." A sua carreira de rapper já o levou a dar concertos em escolas - "e pagam uns 50 euros" - e também na Gala da Fundação no Centro de Congressos do Estoril.

A casa onde vive pode ainda acolher mais um jovem, que pode ser da fundação ou de outra instituição. Os primeiros apartamentos abriram em 2012 (completam cinco anos a 28 deste mês) para raparigas e aí podem viver sete jovens. Ao todo, entre os jovens que já passaram por aqui ou continuam alojados, as casas receberam 15 jovens. "O ideal é que fiquem cerca de dois anos, dependendo depois se têm emprego ou ainda estão em mestrados, vamos ajustando também", explica a responsável.

Acompanhando todos os jovens, Joana Louro diz que há diferenças: "Eles são menos arrumados e cuidados com a casa, mas fazem. Elas são mais dramáticas, entre elas, mais picuinhas."

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