Georgina González estende uma manta num recanto relvado no pátio do Museu Nacional da Costa Rica, em San José. Da pequena mochila, o filho de 4 anos tira um conjunto de livros infantis. O plano é aproveitar as férias escolares e o facto de o Sol estar a espreitar por entre as nuvens para uma manhã de histórias. "Feliz a mãe costa-riquenha que sabe ao dar à luz que o seu filho nunca será soldado", disse um dia o filantropo japonês Ryoichi Sasakawa, ao visitar a Costa Rica. A 1 de dezembro de 1948, neste mesmo pátio que era então do quartel Bellavista, o presidente José Figueres Ferrer anunciava a abolição do exército, derrubando com um maço parte do muro que separava o edifício da cidade e deixando a sua marca no país.."O facto de não termos exército é algo a que damos ainda mais valor quando vivemos noutros países. Eu vivi nos EUA, estive na Europa e pude ver a presença militar em alguns desses lugares. Para os ticos - os costa-riquenhos - é um choque ver militares de uniforme nas ruas, com armas. Não estamos acostumados", conta ao DN Georgina. "Mas vê-lo permitiu-me dar ainda mais valor àquilo que tenho no meu país, algo que também definiu o meu próprio carácter e o dos outros costa-riquenhos", explica a engenheira industrial, que a maternidade surpreendeu aos 42 anos e que além de se dedicar ao filho tem dado aulas na universidade.."Depois da abolição do exército, investiu-se o dinheiro em educação e isso fez que a Costa Rica se colocasse a outro nível. Não temos o dinheiro do Chile, não temos o petróleo da Venezuela, mas temos a inteligência", refere, enquanto o filho procura chamar a sua atenção para as histórias do livro que escolheu. "Os costa-riquenhos sabem que o que têm de fazer é tirar um curso universitário, porque isso coloca-nos num lugar diferente. O talento humano é algo que exportamos", conta..A vista que dava o nome ao quartel já não é tão desafogada como era, porque assim o ditou o crescimento de San José. Mas o miradouro é o primeiro ponto de paragem de um grupo de turistas norte-americanos, que após um cruzeiro pelo canal do Panamá estão prestes a acabar a viagem na capital da Costa Rica. O guia chama a atenção para a placa que assinala o local onde Ferrer deu o golpe com o maço, naquele ato simbólico depois da vitória na guerra civil de 1948. "As armas dão a vitória, mas só as leis podem dar a liberdade", lê-se. O espanto dos turistas já não é tanto para a vista, mas para o facto de o país não ter exército há mais de 70 anos..História.A decisão de Figueres Ferrer, um empresário que tinha ganho fama em 1942 com um discurso radiofónico contra a corrupção do governo de Rafael Calderón Guardia, surgiu num momento específico da história da Costa Rica. A década que ficou marcada pela ampliação do papel social e económico do Estado e pela conflitualidade política e ideológica tinha começado com Calderón Guardia no poder, com o apoio de uma ampla coligação que incluía figuras da Igreja Católica mas também o Partido Comunista..Impedido de se candidatar a um segundo mandato consecutivo, Calderón Guardia apoiou aquele que seria eleito o seu sucessor em 1944, sempre planeando voltar ao poder quatro anos depois. Nas presidenciais de 1948, os primeiros resultados apontaram para a vitória do opositor, o jornalista Otilio Ulate Blanco, mas os calderonistas tinham a maioria no Congresso e anularam o escrutínio. Foi a acendalha para a revolução de Figueres, que pegou em armas com o apoio da Legião do Caribe, que procurava derrubar as ditaduras da América Central (algumas tinham o apoio dos EUA). O conflito durou cinco semanas e causou mais de 500 mortos, culminando aquele ano na decisão histórica.."A abolição do exército esteve ligada ao facto de Figueres ter rompido o vínculo com a Legião do Caribe depois da guerra, em parte uma estratégia para ter o apoio dos EUA", explicou ao DN a historiadora do Museu Nacional, Gabriela Villalobos Madrigal, com o então presidente a não querer que a sua revolução fosse entendida como comunista (partido que seria proibido), num contexto de emergência da Guerra Fria.."A decisão de eliminar o exército foi também possível graças ao enfraquecimento da instituição desde há décadas", acrescentou, indicando que em 1920 este não tinha mais do que mil homens e que pouco antes da guerra só tinha 300 efetivos. Era uma entidade desprestigiada depois dos abusos da ditadura militar do general Tinoco (1917-1919) e do fracasso de uma guerra com o Panamá em 1921. O exército foi substituído por uma Guarda Civil, "com responsabilidades policiais, de ordem pública e segurança do país", que incluiu alguns ex-combatentes do antigo exército de Libertação Nacional..A abolição do exército ficou inscrita na Constituição aprovada em 1949 e nem duas tentativas de invasão de Calderón Guardia a partir da Nicarágua (uma ainda em 1949 e outra em 1955) fizeram o país recuar. A Costa Rica recorreu então ao Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, que diz que um ataque contra um é um ataque contra todos, e à Organização de Estados Americanos para travar as invasões. A história está contada no Museu Nacional, que nasceu naquele mesmo 1 de dezembro de 1948, depois de Figueres entregar as chaves do quartel à Universidade da Costa Rica para que fosse convertido num centro cultural. Quatro décadas depois, seria inaugurada a Praça da Democracia pelo então presidente Óscar Arias, que venceu o Nobel da Paz em 1987 pelos seus esforços para acabar com os conflitos na América Central. Na praça diante do quartel está uma estátua de bronze de "Don Pepe", como é conhecido Figueres, que inclui as figuras de uma rapariga com um violino, símbolo da cultura, e de um rapaz sentado com livros, que representa a educação..Sem exército, aposta na educação."Sabe o que é que Don Pepe disse? 'Os nossos soldados serão os nossos alunos.' Ou terá sido 'não quero um exército de soldados, mas de professores'. Algo do género", explica Roberto, enquanto enfrenta o trânsito de San José, acostumado a transportar turistas e visitantes de um lado para o outro. A educação foi precisamente uma das apostas para gastar o dinheiro que se poupava sem exército. "A escola é gratuita, ainda hoje, todos têm oportunidade de estudar. O meu filho mais velho estudou na escola pública, mas o inglês que tinha não era o melhor e optei por pôr os meus outros dois filhos no colégio. Agora têm aulas de inglês, francês e mandarim", conta..Antes da abolição do exército, a Costa Rica tinha o quarto crescimento do PIB per capita mais baixo da América Latina. Depois da abolição, o país tornou-se o segundo melhor neste indicador, segundo um estudo dos investigadores Alejandro Abarca e Suráyabi Ramírez, publicado em outubro de 2018 pelo Observatório do Desenvolvimento da Universidade da Costa Rica. "O país duplicou o PIB per capita a cada 30 anos desde a abolição do exército em vez de a cada 53", explicou Ramírez ao DN numa video hamada desde os EUA, onde está a fazer um doutoramento.."O que observamos é que o dinheiro que não foi usado no desenvolvimento do exército foi gasto em infraestruturas, em educação e saúde. O governo também cresceu. Antes representava 2,6% do PIB da Costa Rica, 15 anos depois já representava 20%. Não só houve uma mudança na forma como se dava prioridade aos gastos, mas também se gastava muitíssimo mais", acrescentou o investigador. Figueres, além de manter as reformas sociais lançadas por Calderón, aprofundou as que existiam e criou outras. Gastos que contribuíram para o desenvolvimento a longo prazo do país.."Dizia-se que aqui havia mais professores do que soldados. É um tema que continua atual, já que, se analisarmos o orçamento, o que está previsto para gastos militares é zero. Noutros países, a manutenção de um exército é extremamente cara", diz ao DN o vice-ministro da Segurança Pública, Eduardo Solano, do governo do presidente Carlos Alvarado. "Obviamente que se retirarmos os gastos com o exército ficamos com mais amplitude orçamental para investir em educação e para investir em saúde. A Costa Rica investe 7,7% do seu PIB em educação. Somos o país que também tem um serviço de saúde que é dos mais sólidos da região, porque é universal e solidário.".Para Solano, o facto de não ter exército tornou-se um "pilar da idiossincrasia costa-riquenha". E explica: "Quando nos identificamos como costa-riquenhos no estrangeiro, uma das primeiras coisas que dizemos é que somos um país sem exército. Tornou-se um aspeto fundamental da identificação de um costa-riquenho. É algo de que sentimos orgulho e que utilizamos para nos diferenciarmos de qualquer outra nacionalidade. A abolição do exército coincide com a construção do que denominámos de segunda república, que fez que a Costa Rica tenha uma narrativa de um país de paz.".O turismo e a aposta nas questões ambientais marcam a Costa Rica, mais conhecida pelo café, pelos ananases e pelas bananas mas que é igualmente grande exportadora de componentes tecnológicos. O êxito do país torna-se ainda maior quando comparado com os vizinhos. "Se é certo que a Costa Rica melhorou após a abolição do exército, por uma série de reformas, a verdade é que o resto da América Latina entrou em caos. Todo o resto da região ou teve uma ditadura ou teve uma guerra civil ou algum problema político. A única exceção foi a Costa Rica", lembra Abarca. "O que ainda se vê na Costa Rica é esta estabilidade. Não quero que pareça um insulto ou uma piada, mas é um país muito aborrecido nesse sentido. Não acontece nada. Institucionalmente é muito tranquilo", explica, lembrando, contudo, que ainda existem problemas no país. "A Costa Rica não é um país desenvolvido, ainda tem uma série de desafios pendentes. Ainda há pobreza, agora temos um défice fiscal muito grande, há desemprego." E também violência..Uma questão de segurança.O vice-ministro reconhece a situação: "Vamos pôr nome e apelido nas coisas. O narcotráfico e o crime organizado são a causa da violência que temos na região." A situação pode não ser tão grave como é no triângulo norte (El Salvador, Honduras e Guatemala) ou mais a sul, na Venezuela ou na Colômbia, mas ainda existe e a Costa Rica não consegue evitar estar na rota do tráfico.."A fenomenologia do crime organizado na Costa Rica é doméstica. São estruturas costa-riquenhas, lideradas por costa-riquenhos, mas que introduzem droga, cocaína colombiana, equatoriana, venezuelana...", conta Solano, explicando que a pobreza e as desigualdades geraram conflito e violência urbana sobretudo em San José e Limón. Para ajudar, a Costa Rica recebe o apoio dos EUA a nível de equipamento e na capacitação dos profissionais da Guarda Civil, assim como na coordenação de programas preventivos. No âmbito do tráfico, a partilha de informações e a coordenação é feita com os países da região, havendo um convénio de patrulha das águas extraterritoriais (seja Pacífico ou mar das Caraíbas) também com os EUA.."A América Latina concentra a maior taxa de homicídios do planeta - somos o número um - e a sub-região centro-americana ainda mais", afirma Solano. "Apesar de termos desafios em segurança, continuamos a ser o país que tem números muitos mais baixos do que os vizinhos", acrescentando que a taxa máxima foi alcançada em 2017 com 12,3 homicídios por cem mil habitantes, e que desde então tem vindo a descer, chegando a 11,2 em 2019. "Houve um aumento dos homicídios, mas nos dois anos de governo Alvarado tivemos reduções importantes e o objetivo é continuar a consolidar a redução." Mas isso pode ter um impacto no turismo..O encontro de Solano com o DN estava marcado para as 14.00, mas seria adiado para as 16.00. A razão? O vice-ministro foi chamado ao palácio presidencial. Durante o almoço, numa soda (restaurante tradicional) próximo do ministério onde em todas as mesas há um prato de casado (carne ou peixe acompanhado de arroz, feijão, batata, banana, palmito, salada, tortilhas e, em algumas versões, até massa), a televisão passa a notícia de um turista francês que foi morto à facada em Playas del Coco, um dos pontos turísticos do lado do Pacífico. Fala-se de um problema com o telemóvel, Solano diz depois que havia na zona um centro de drogas..Um caso complicado, especialmente depois de o Departamento dos EUA ter baixado a categoria do país na questão de segurança. "No ano passado houve uma redução do número de turistas que foram alvo de algum crime", explica, falando numa taxa de 0,2% em relação ao número de entradas. "Mas em 2018 houve três homicídios que tiveram um grande impacto mediático, porque foram três mulheres", explica, falando também do problema de turistas que morreram afogados. "Um homicídio é grave, mas raro; haver três num único ano gera impacto. Porém, nós continuamos certos de que este é um destino seguro para os turistas", afirma, confiante de que os EUA vão rever essa categorização..Pura vida.Na pedestre Avenida Central de San José, há música nas ruas, vendedores a anunciar as promoções dentro das suas lojas, gente apressada a caminho das compras no histórico Mercado Central. Mas há também polícia metropolitana quase a cada quarteirão, onde os turistas se misturam com os locais..O facto de o país não ter exército não é algo que os amigos Pablo e Luana, de 25 anos, discutam muito. "Já é assim há muito tempo. Já faz parte de quem somos", diz ela, encolhendo os ombros. Os dois são demasiado novos para se lembrarem dos protestos quando, em 2003, o então presidente apoiou a coligação norte-americana durante a invasão do Iraque, só para mais tarde os tribunais dizerem que tal era inconstitucional. "Não tem volta atrás esta decisão", explica ele, despedindo-se com um típico "pura vida"..A expressão usada tanto para saudação como para despedida ou agradecimento ouve-se um pouco por todo o lado na Costa Rica. Traduz bem o estado de vida dos ticos, como são conhecidos os costa-riquenhos, apesar de na realidade ter sido introduzida na década de 1950 por um filme mexicano e se ter popularizado apenas a partir dos anos 1980. "Para nós é tão normal quanto o facto de não termos exército", explica Luana com um sorriso, já a seguir caminho. "Pura vida!"