Costa admite problemas na relação e Marcelo quer factos
O Presidente deixou o primeiro-ministro sem resposta e fica à espera de factos sobre o apoio às vítimas dos incêndios e sobre o plano para evitar novas tragédias. Confrontado à porta de uma fábrica de queijadas em Vila Franca do Campo, na costa norte de São Miguel, com as declarações de António Costa, que a meio da tarde de ontem veio confirmar que há problemas na relação entre Belém e São Bento e que disse esperar que "seja retomado o excelente esforço de cooperação institucional" entre Presidência e governo, Marcelo Rebelo de Sousa limitou-se a recordar o que já tinha dito na quinta-feira. "Mas eu já vos disse que o que interessa aos portugueses agora não são palavras, mas factos. Tratar das vítimas da tragédia."
Ignorando o facto de que António Costa tinha acabado de falar pela primeira vez sobre o assunto, definindo-se como homem de "nervos de aço" e confirmando o mal-estar entre os palácios - sentido em Belém depois da declaração ao país do primeiro-ministro na sequência dos incêndios deste mês e pelo governo ao assistir à atuação do Presidente no terreno e ao seu discurso em Oliveira do Hospital - e de que o primeiro-ministro tinha verbalizado a certeza de que "aquilo que tem corrido bem nestes dois anos não vai deixar de correr bem nos próximos", o Presidente foi curto nas palavras ao identificar o que os portugueses querem: "Não é o diz-que-diz, não é bate-papo, são factos. Tratar das vítimas da tragédia e não haver mais tragédias."
Já umas horas antes, Marcelo tinha evitado o assunto. Questionado diretamente pelos jornalistas, afirmou apenas que "sobre essa matéria o que tinha a dizer está dito". À saída de uma longa visita à Escola Gaspar Frutuoso, em Ribeira Brava, São Miguel, o Presidente escusou-se mesmo a dizer se este era, para ele, um assunto encerrado. A única cedência a esta estratégia de acalmia foi uma frase sobre as declarações do novo ministro da Administração Interna. Eduardo Cabrita disse ontem que "Portugal não admitirá que nos dividamos em torno desta tragédia". Era tudo o que o Presidente queria ouvir. Foi como que um balde de água para apagar um pequeno incêndio. "É exatamente o que eu tenho dito", afirmou Marcelo, "tenho apelado a um consenso, a um pacto, a uma convergência de regime sobre essa matéria. Portanto, se for possível haver essa convergência sobre o plano de emergência, sobre a solução que vier a ser adotada - o mais rápido possível, mas devidamente estudada -, sobre a prevenção e combate e também sobre a floresta, eu acho que isso era muito bom para o país".
Questionado sobre se algo tinha mudado no papel do Presidente nesta "nova fase" pós-moção de censura ao governo, Marcelo sublinhou que está onde sempre esteve, "com o mesmo mandato, com os mesmos poderes, com a mesma leitura desses poderes e com as mesmas exigências". Exigência a quem detém o poder executivo. Ao governo, claro. E quais? "Compromissos nacionais de regime, que o governo seja forte e governe e que dure toda a legislatura, que a oposição seja forte e constitua uma alternativa para o caso de os portugueses, no momento das eleições, quererem escolher uma outra solução de governo." Para quem tenha dúvidas, o Presidente sublinha: "Foi assim, é assim, será assim. Eu não mudo. Sou muito determinado naquilo que são as linhas do meu mandato. Não vai haver mudanças."
E se o homem não muda, mudaram as circunstâncias? Sim. "É evidente que as circunstâncias são complexas no momento. O grande desafio agora é o do crescimento económico e da criação de emprego, por um lado, e ao mesmo tempo fazer face a problemas que irromperam. Um deles tem uma prioridade política óbvia, que é uma resposta cabal a este problema da floresta."
Esta conversa com os jornalistas aconteceu à saída de uma aula sobre cidadania para alunos do 5.º e do 6.º anos, que durou mais de uma hora com o Presidente sentado numa cadeira a meio do palco. Uma pergunta de uma aluna sobre como era o dia típico do Presidente deu a deixa para uma resposta curiosa. Marcelo afirmou que o caos organizado de algumas das suas visitas, com constantes atrasos, nem sempre é da sua responsabilidade. "Na visita que fiz pelos concelhos onde houve a tragédia há uma semana e meia, eram os próprios presidentes de câmara ou de junta que me queriam mostrar mais lugares. Mais casas, mais campos, mais escolas que tinham ficado danificados ou capelas. Ou então eram populações que estavam à beira da estrada a pedir para parar e o Presidente não pode dizer adeus e seguir porque aquelas populações estão a sofrer uma fase muito difícil da sua vida." Pode ter sido apenas uma resposta inocente a uma pergunta inocente, mas também podemos encontrar-se aqui uma explicação e uma resposta aos que têm criticado a tournée de afetos da semana passada pelo centro do país.
Para lá da aula de cidadania, os alunos ficaram a conhecer Marcelo por Marcelo. Um Presidente que come "uma banana e um iogurte ao pequeno-almoço, às vezes só duas bananas", que não almoça, mas come uma rápida "tosta de queijo e um sumo de ananás" em Belém, que aproveita essas horas de almoço para marcar audiências, incomodando horas de almoço alheias, e que ao jantar come muito porque fica acordado até tarde, até às quatro da manhã. O prato preferido para essas jantaradas? "O meu prato preferido é uma salada de queijo, tomate e rúcula." E ficaram a saber que têm um Presidente "minhoquinhas" que gosta das malas muito bem arrumadas e que, mesmo tendo quem lhe faça e desfaça as malas nas viagens pelo país e ao estrangeiro, sente prazer em fazer isso. "Gosto de arrumar tudo muito bem arrumado. Gosto, é uma mania." O pior dessa vida na estrada? Ser instalado "em suites presidenciais enormes. "É uma perda de tempo, são quartos e mais quartos, salas e mais salas e duas casas de banho. Para quê? E depois nunca sei onde está o computador, fica sempre tudo longe, é uma perda de tempo." E andar a mudar de hotel todos os dias. "Nunca sei de que lado da cama fica o candeeiro e a mesinha-de-cabeceira."