Corrupção. Mais de 20 propostas e porta aberta à punição do enriquecimento injustificado

Deputados debatem mais de duas dezenas de propostas que visam o combate à corrupção. Punir a ocultação de riqueza de titulares de cargos políticos e altos cargos públicos é um traço comum a vários projetos, depois de Marcelo ter dito que "já se esperou tempo de mais".
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A Assembleia da República vai debater esta sexta-feira mais de duas dezenas de propostas contra a criminalidade económica. Nenhum partido fica fora da fotografia: às quatro propostas do governo juntam-se um projeto de lei do PS, três do PSD, um do Bloco, três do PCP, quatro do CDS, dois do PAN, um do PEV (mais um projeto de resolução), três do Chega e um da Iniciativa Liberal, e a contagem pode ainda aumentar.

Uma mão-cheia de propostas versa sobre um tema que desde há 15 anos ocupa a agenda parlamentar, sem que daí tenha resultado qualquer lei - o enriquecimento ilícito, injustificado ou, na formulação que agora ganha terreno, ocultação de riqueza. Até mesmo o PS, que foi desde sempre contra uma medida que diz inverter o ónus da prova, avança agora com um projeto de lei. Uma medida que tem o beneplácito expresso (dir-se-ia mesmo um "empurrão") do Presidente da República: "Já se esperou tempo de mais para dar esse passo."

O assunto leva anos de discussão, várias propostas chumbadas, dois diplomas aprovados e depois declarados inconstitucionais. Desta vez, há propostas bastante similares que deixam antever um passo em frente (ainda que o problema possa estar nos detalhes).

Com o alto patrocínio do Presidente da República que, no final de abril, deixou uma mensagem inequívoca: "Para aí há dez anos, ainda não era Presidente, eu defendia que era preciso prever um crime - chamasse-se ele como se chamasse - que, respeitando a Constituição, punisse aquilo que é o enriquecimento, nomeadamente de titulares de poderes públicos, que não tem justificação na remuneração do exercício da função. Penso que já se esperou tempo de mais para dar esse passo e um dia teremos de dar esse passo. Havendo essa vontade acredito que é desta. Se todos querem isso e todos pensam isso, todos farão o que está ao seu alcance para que isto se concretize", desafiou Marcelo. "Quanto mais depressa melhor." Passados dois dias, António Costa admitia esta solução e o PS anunciou depois que juntaria uma proposta própria ao debate. O projeto de lei dos socialistas entregue no parlamento obriga à identificação dos factos que originem um aumento do património ou do rendimento equivalente ou superior a 33 250 euros (o equivalente a 50 salários mínimos), criminalizando a omissão intencional destes dados. A moldura penal é agravada para os cinco anos.

O atual quadro legal que define as obrigações dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, quanto à declaração de rendimentos e património, prevê pena de prisão até três anos quando sejam omitidos valores superiores a 33 250 euros, punindo os acréscimos patrimoniais não justificados com uma taxa especial de IRS de 80%. Mas não obriga a que o autor da declaração identifique a origem de um aumento patrimonial, o propósito que agora é enunciado pela generalidade dos partidos que, com algumas diferenças, dizem ter seguido a proposta apresentada em abril aos grupos parlamentares, pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses.

Bloco de Esquerda e PAN defendem também uma pena de prisão até cinco anos para titulares de cargos públicos e políticos que não consigam justificar um acréscimo patrimonial superior aos mesmos 50 salários mínimos sobre os rendimentos declarados, e uma taxa de IRS de 100%. A proposta do PCP abrange todos os cidadãos com património e rendimentos superiores a 266 mil euros (400 salários mínimos), que ficam obrigados a uma declaração à Autoridade Tributária, que terá de ser atualizada e justificada sempre que se verifique um incremento patrimonial superior a 66 500 euros (cem salários mínimos). O incumprimento terá uma moldura penal superior no caso de titulares de cargos públicos ou políticos.

Já o PSD considera que a criminalização da omissão dos factos que deram origem a um aumento substancial do património voltará a esbarrar no crivo do Tribunal Constitucional, pelo que propõe que esse facto seja comunicado ao Ministério Público, para ser investigado.

Para o PAN, assim como para a Iniciativa Liberal, a declaração de rendimentos deve também abranger "vantagens patrimoniais futuras" - a "promessa de um cargo bem remunerado, de uma renda, do perdão futuro de uma dívida", exemplifica a IL.

É outra das medidas previstas nos diplomas do governo e que deverá ser aprovada: o prazo de prescrição é estendido para os 15 anos nos crimes de peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e violação de segredo, prevaricação, oferta ou recebimento indevido de vantagem, corrupção passiva para a prática de ato ilícito e corrupção ativa.

Facilitar a separação de processos, para evitar que se arrastem no tempo, é um dos objetivos enunciados pelo governo. "Admite-se como fundamento para a não conexão de processos a previsão, pelo Ministério Público ou pelo tribunal, de que tal conexão implicará a ultrapassagem dos respetivos prazos de inquérito ou da instrução", refere a proposta de lei do executivo. Também o PSD tem uma proposta no mesmo sentido, defendendo a separação de processos sempre que esteja em risco a "realização da justiça em tempo útil".

A figura da redução ou suspensão da pena já está prevista no ordenamento jurídico nacional, mas um dos quatro diplomas do governo que vai sexta-feira a debate propõe-se agora aprofundá-la. "O processo é tão complexo que na prática não se utiliza e o que fizemos foi eliminar os principais obstáculos", afirmou a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, aquando da aprovação em Conselho de Ministros da estratégia anticorrupção, rejeitando que se possa falar num regime de delação premiada.

A proposta que está em cima da mesa admite a dispensa ou a redução de pena do denunciante. Caso o agente denuncie o crime antes da instauração do procedimento criminal, a dispensa torna-se obrigatória, mas sempre com a intervenção de um juiz, que tem de verificar a existência dos pressupostos (a medida não se aplica no crime de corrupção para ato ilícito, quando se trate do agente que praticou o ato). O diploma estabelece ainda que "a pena é especialmente atenuada se os arguidos colaborarem ativamente na descoberta da verdade até ao encerramento da audiência de julgamento em primeira instância, contribuindo de forma relevante para a prova da sua responsabilidade ou da responsabilidade de outros". Também o CDS e o PAN avançam com projetos de lei para definir um regime de proteção do denunciante.

O PSD defende o agravamento das penas aplicáveis aos crimes de corrupção e criminalidade económico-financeira, em especial para os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos. E quer alargar até aos 12 anos a proibição de desempenho de cargos públicos por titulares de cargos políticos condenados por criminalidade económica. Já o Chega quer aumentar a moldura penal dos crimes de corrupção ativa e passiva. Neste último caso, a lei prevê penas de prisão de um a cinco anos ou de um a oito anos, que o partido passa para dois a oito anos ou cinco a 16. Na corrupção ativa o atual máximo de cinco anos passa a dez.

O PCP quer proibir o Estado de recorrer à arbitragem para resolver litígios em matéria administrativa e fiscal, e quer ver estes processos remetidos para tribunal.

O PEV volta a propor o fim dos vistos gold (já várias vezes chumbado), argumentando que este mecanismo tem estado "associado a práticas ilícitas, como corrupção, peculato, branqueamento de capitais ou tráfico de influências".

Boa parte dos projetos que serão discutidos nesta sexta-feira têm por pano de fundo um documento entregue aos grupos parlamentares, em abril, pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP). Mas a associação já veio entretanto afirmar que as propostas, quer dos socialistas quer dos sociais-democratas, sobre o enriquecimento ilícito em altos cargos públicos "mantêm os alçapões que impedem que a lei funcione". Para Manuel Soares, presidente ASJP, PS e PSD pretendem perpetuar "a necessidade de haver notificação prévia [do Tribunal Constitucional] para haver um crime". E "manter a notificação é quase um truque porque o dinheiro que está escondido é desconhecido e, por isso, nunca haverá notificação".

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