Coreia do Sul. Feministas e refugiados dão sal a eleições vistas como plebiscito ao presidente
Em França, a segunda volta das municipais foi adiada para 21 de junho e a primeira registou uma abstenção recorde. Em Inglaterra, as eleições locais foram reagendadas para 2021. Vários estados norte-americanos adiaram as primárias, só para enumerar alguns exemplos. As autoridades da Coreia do Sul não viram necessidade de seguir esse caminho: o país foi um dos primeiros atingidos pelo vírus que eclodiu em Wuhan, China, mas a resposta do governo levou a uma curva descendente de novos infetados. Nos seis dias anteriores ao escrutínio, o número de contaminados foi inferior a 50, quando no final de fevereiro ultrapassava os 900.
Com uma capacidade para fazer milhares de testes diários desde muito cedo, rastreamento dos casos e medidas de isolamento fortes, o país é um modelo na contenção do novo coronavírus, a par de Taiwan. Agora as preocupações viraram-se para os focos de infeção oriundos do estrangeiro (metade dos novos casos), tendo sido imposta quarentena obrigatória a quem entre no país e testes obrigatórios aos passageiros provenientes dos EUA.
As autoridades sanitárias, que registam 11 mil casos e cerca de 220 mortos numa população de 50 milhões, reiteraram a importância do distanciamento social durante a jornada eleitoral. "Preocupa-nos que o distanciamento social possa perder força no dia da votação, que também é feriado", afirmou Yoon Tae-ho, um quadro superior do Ministério da Saúde.
"Com uma máscara, vou a uma assembleia de voto assim que esta abrir", disse a funcionária administrativa Shin Hyeon-jung à agência de notícias Yonhap. "Terá mais sentido exercer o direito de voto no meio da pandemia."
Shin é uma entre 35 milhões de eleitores chamados às 14 330 mesas de voto, que estão em funcionamento entre as 06.00 e as 18.00 para eleger os 300 deputados da nova legislatura.
Na sexta-feira e no sábado passados decorreu uma votação antecipada, a qual atingiu um recorde de afluência (26,7%, mais 14,5% do que em 2016).
Os eleitores deparam-se com os boletins de voto mais longos de sempre (48 centímetros) em razão de outro recorde: o número de partidos que concorrem às urnas, 35.
A explicação para a multiplicação de forças políticas passa pela reforma eleitoral aprovada no ano passado. O regime presidencialista assenta numa assembleia cujos deputados são eleitos através de um voto misto de sistema uninominal (253 deputados) e de representação proporcional (47 deputados).
Com a reforma eleitoral, os partidos menores ganharam mais hipóteses de chegar ao parlamento. Uma abertura que acabou por ser parcialmente sabotada pelos partidos principais, o progressista Partido Democrático, do presidente Moon Jae-in e o conservador Partido do Futuro Unido, com a criação de partidos satélite. O primeiro criou o Partido dos Cidadãos Unidos e o segundo o Partido do Futuro da Coreia.
Os partidos menores, incluindo o Partido do Bem-Estar do Povo e o Partido da Justiça (ambos com representação parlamentar), condenaram a jogada dos dois maiores partidos e sublinharam a necessidade de manter os dois maiores partidos sob controlo.
A outra medida a destacar da reforma eleitoral é que os cidadãos com 18 anos já podem votar, quando antes o direito de voto era assegurado aos 19.
Enquanto o Partido Democrático exortou os eleitores a apoiarem a luta do governo contra o novo coronavírus e os seus esforços para minimizar as consequências económicas da pandemia, o Futuro Unido alega que o executivo é incapaz de apoiar a economia e sublinha a necessidade de dissuadir aquilo a que chamou a tirania do governo de Moon Jae-in, pelo que quer impedir a maioria absoluta do partido no poder.
"A economia vai sofrer novas dificuldades e a subsistência das pessoas vai deteriorar-se", disse Hwang Kyo-ahn, o líder do maior partido da oposição e ex-primeiro-ministro.
Não será tarefa fácil convencer os sul-coreanos. Vencedor das presidenciais realizadas em maio de 2017, com 41,1 % dos votos, o presidente Moon Jae-in viu-se a braços com a economia em arrefecimento e com um escândalo que envolveu um dos seus próximos, o ministro da Justiça Cho Kuk, que foi acusado de corrupção, tal como a sua mulher. Em consequência, a taxa de aprovação do presidente caiu para os 30%.
A forma como Moon Jae-in está a gerir a crise mudou a opinião de muitos eleitores, obtendo agora mais de 50% de apoio.
Os eleitores estão muito satisfeitos (33,6%) e satisfeitos (21,6%) com o governo, pelo que não se prevê um terramoto eleitoral.
"No período que antecedeu a campanha oficial, esperava-se uma disputa acesa entre os dois maiores partidos", disse o analista político Ko Jin-dong à Yonhap. "Mas o pêndulo parece oscilar em direção ao Partido Democrático, uma vez que a resposta do governo ao surto recebeu uma avaliação positiva."
As eleições legislativas realizam-se no mesmo dia em que a vizinha Coreia do Norte festeja o 108.º aniversário do fundador do regime, Kim Il-sung. Quem sabe se como forma de comemorar, Pyongyang disparou vários mísseis de cruzeiro em direção ao mar do Japão ou mar de Leste, anunciaram as forças armadas da Coreia do Sul. na terça-feira.
A política do presidente sul-coreano tem sido de aproximação e de negociações com o regime totalitário, sobretudo na questão nuclear. Um tema sempre quente na Coreia do Sul mas que por força das circunstâncias ficou para segundo plano.
Há dois candidatos que fazem questão de falar no tema: Ji Seong-ho e Thae Yong Ho, ambos do Partido do Futuro Unido. O primeiro fugiu da Coreia do Norte em 2006 e em 2018 dirigiu-se ao Congresso dos Estados Unidos para ouvir de Donald Trump um elogio pela sua coragem durante o discurso sobre o estado da união.
Ji perdeu uma mão e uma perna nos anos 1990. Tinha 13 anos e ia roubar carvão para ajudar a sua família, quando caiu de um vagão de um comboio. Além do acidente foi operado sem morfina e sem anestesia. "O meu pai recebeu uma sacola com a mão e a perna do filho" para que as enterrasse, contou Ji à AFP. "Foi assim que recompensaram sua lealdade ao partido."
Apesar da deficiência, escapou-se a nado com a ajuda do irmão. Da China foi para o Laos, Birmânia e Tailândia até, por fim, chegar à Coreia do Sul, onde encontrou oportunidade para estudar Direito e ser operado, tendo agora duas próteses. Com 38 anos dirige uma organização de defesa dos Direitos Humanos que ajuda cerca de 500 norte-coreanos a chegarem ao sul da península.
Já Thae Yong Ho teve uma vida e uma fuga menos problemática. Era vice-embaixador de Pyongyang em Londres antes de ter desertado em 2016.
Se ganhar o seu círculo eleitoral em Gangnam, o abastado bairro de Seul tornado famoso pelo músico Psy no hit Gangnam Style, Thae tornar-se-á no primeiro antigo dirigente da Coreia do Norte a ser eleito por sufrágio direto para a assembleia da Coreia do Sul.
Thae acredita no poder simbólico da sua vitória: uma mensagem aos quadros superiores, de que já fez parte, de que a deserção do regime de Kim Jong-un pode fazer a diferença. "Quero dizer-lhes que há um novo caminho para o seu futuro."
O ex-diplomata da ditadura estalinista prosseguiu: "Tenho a certeza de que, quando conseguirmos mudar as mentalidades do grupo de elite na Coreia do Norte, poderemos facilmente derrubar o sistema Kim."
Nos últimos anos, as novas gerações de sul-coreanas têm saído à rua seja pela pela legalização do aborto, seja pela organização do movimento #MeToo e contra as câmaras ocultas que levou às maiores manifestações de direitos das mulheres da história da Coreia.
Apesar dos progressos económicos e tecnológicos, a Coreia do Sul continua a ser socialmente tradicional e patriarcal. Lidera a lista dos países desenvolvidos com a maior diferença salarial entre homens e mulheres e apenas 3,6% dos membros do conselho de administração das grandes empresas coreanas são mulheres.
Na política, a situação também está muito longe da igualdade. As mulheres representavam apenas 17% dos lugares no parlamento cessante.
"Quase todos os políticos masculinos, independentemente de serem progressistas ou conservadores, são tradicionalistas quando se trata dos direitos das mulheres", disse Lee Soo-jung, professor de criminologia na Universidade Kyonggi.
Daí ser notícia a fundação, no Dia Internacional da Mulher, do Partido das Mulheres, que conta com 10 mil militantes, tendo a esmagadora maioria menos de 30 anos. Tem quatro candidatas nas listas da representação proporcional e, para garantir um único lugar, serão necessários 3% dos votos.
"Eu assinei petições, participei em comícios contra a violência sexual sobre as mulheres, mas apercebi-me de que não ia resultar. Por isso, decidi concorrer à Assembleia Nacional", disse Kim Ju-hee, uma das quatro candidatas à AFP.