Contra a 'perigosa' Anne Frank

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O Diário de Anne Frank é "um livro perigoso" por estar "carregado de emoção", ser "dramático e teatral", e suscitar simpatia pelos judeus. Pensava eu que só um nazi, descendente ideológico das bestas humanas que encarceraram a pequena Anne no campo de extermínio de Bergen-Belsen, onde morreu em 1945, poderia fazer considerações deste género sobre um dos mais comoventes relatos de que há memória do quotidiano de uma família acossada pelos horrores da guerra - neste caso, na cidade de Amesterdão ocupada pelas hordas de Hitler, entre 1942 e 1944. Mas não. Também o Hezbollah - o Partido de Deus, movimento extremista que tem espalhado o terror no Médio Oriente - pensa o pior do Diário de Anne Frank, reduzindo-o ao rótulo de mera "propaganda sionista", como referiu a estação televisiva Al-Manar, um dos mais destacados veículos de disseminação do fundamentalismo islâmico no Médio Oriente.

Os protestos foram de tal maneira estridentes que bastaram para pôr fim ao estudo da obra numa escola privada de língua inglesa em Beirute, banindo-a do programa lectivo. "Estas escolas respeitáveis ensinam aos seus alunos a alegada tragédia vivida por esta rapariga enquanto sentem vergonha de lhes falar da tragédia do povo libanês, da tragédia do povo palestino, da tragédia do povo do sul sob a ocupação sionista", protestou um destacado dirigente do Hezbollah, Hussein Hajj Hassan.

Percebe-se a lógica do protesto: se o Holocausto nunca existiu, como crêem estes fanáticos, a tragédia de Anne Frank, morta aos 15 anos num campo de concentração nazi, só pode ser "alegada". E nem o testemunho abonatório de alguns dos mais influentes leitores deste Diário, como Nelson Mandela, ex-presidente sul-africano e Prémio Nobel da Paz, os faz mudar de opinião.

Há uma linhagem histórica que une Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler, aos actuais dirigentes do Hezbollah: comungam do ódio visceral aos judeus, prestam o mesmo culto à violência e partilham o gosto atávico pela censura de obras literárias. Incapazes, portanto, de entender estas palavras que Eleanor Roosevelt dedicou à obra imortal de Anne Frank: "Um dos mais argutos e tocantes comentários sobre a guerra e o seu impacto nos seres humanos que jamais li."

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