O primeiro grande desígnio do programa do novo governo diz assim: "aumentar o rendimento disponível das famílias para relançar a economia." Isto vai ou pode acontecer? Ajudará o emprego? É possível fazê-lo sem o crédito bancário que esteve disponível no passado e que, aparentemente, não voltará? Ou voltará?.Depois de vários anos, sobretudo os do programa de ajustamento (que decorreu entre 2011 e 2014, mas cujos efeitos de desvalorização interna devem perdurar no tempo), o peso do consumo continua sob pressão. Esta componente do PIB, que cá tem um peso assinalável de quase 66%, quebrou e arrastou toda a economia consigo..O anterior governo PSD-CDS e as instituições da troika (BCE, CE e FMI), que defenderam que a população estava "a viver acima das possibilidades" e a "consumir a crédito", viram nisto um sinal. Estaria Portugal a ajustar graças às reformas feitas? Seria agora a vez das exportações liderarem a economia?.Esta tornou-se realmente mais barata e competitiva em alguns setores. "O turismo é um exemplo recente desse suposto sucesso", observa José Reis, professor catedrático de Economia na Universidade de Coimbra. Isto aconteceu já depois do "progresso assinalável" dos têxteis e do calçado na década passada). Apesar disso, na economia, os salários têm caído de forma quase transversal, sobretudo nos escalões médios e baixos, arrastando as expectativas das famílias e, neste universo, da classe média. Foi decisivo para fazer baixar a despesa em consumo, claro. "Nos últimos anos, levou-se ao limite essa ideia de opção exportadora. Diz-se que as exportações aumentaram, mas na verdade são as exportações de serviços que estão a puxar por isto e muito à custa do turismo. Logo o turismo, que assenta tanto em trabalho precário e pouco qualificado", observa o economista. Mas, continua, "a retoma estruturada, apoiada na procura interna e no setor exportador, só resulta com mais investimento e com uma verdadeira política de redistribuição de rendimentos"..E um regresso persistente do crédito ao consumo não tem um lado inquietante? "Não sei se tem. Se as pessoas tiverem trabalho, se os emigrantes regressarem, se mais pessoas produzirem e consumirem... é dramático? É indesejável? Diria que não",afirma..A partir de 2011, o desemprego subiu para níveis nunca vistos na história moderna do país (16,4% da população ativa foi a média de 2013), a emigração disparou como no tempo da ditadura, as empresas (paralisadas pela rarefação de crédito) travaram negócios, muitas faliram. As mais fortes foram chamadas de campeões nacionais. O Estado, um dos alvos principais do ajustamento em curso, começou a emagrecer, a despedir, a fechar serviços. Quer isto dizer que o consumo privado é coisa do passado? Na verdade, ninguém acha bem isso. As limitações futuras sobre os gastos é que são grandes..Marko Mrsnik, um dos economistas da agência de ratings Standard & Poor"s que segue Portugal, considera que o crédito em excesso é mais uma herança do passado do que uma ameaça que acompanha a retoma. Até porque esta deve ser fraca. "Os ratings de Portugal permanecem limitados pelo elevado endividamento do setor público e privado, pela dívida externa elevada e pelo fraco mecanismo de transmissão monetária, os quais dificultam o potencial de crescimento económico no médio e longo prazo." Para o diretor da S&P, "embora as condições financeiras tenham melhorado, e esteja a ocorrer nova concessão, o crédito agregado continua em queda". Pode haver algumas forças de "apoio à procura interna" - um mercado de trabalho "em reconstrução", um pouco mais de rendimento disponível "devido ao declínio dos preços do petróleo, à inflação baixa e a reduções de impostos", mas "a alta alavancagem continua a ser uma restrição"..Sandro Mendonça, economista do ISCTE, tem uma abordagem diferente. "O crédito às famílias tem tido aumentos preocupantes", mas realmente inquietante "é que a venda de automóveis também está febril". "Não é normal a compra de carros a pronto, sobretudo nas gamas de luxo. A Mercedes, entre janeiro e outubro, teve um crescimento homólogo de 33%, mais do dobro da média dos outros mercados." Para o investigador, "tendências assim são estranhas num país que não está a ficar mais rico do que os outros". "O país em que o anterior governo sorteava Audis como incentivo ao bom contribuinte. Um país que está confundido nos seus valores ainda não saiu da insustentabilidade." Para o professor do ISCTE, "continuamos no velho modelo de reciclagem dos excedentes externos dos países do norte, os que vendem os carros e canalizam capitais".