Constitucionalistas divididos sobre violação da igualdade

A visita de papas já deu feriados, agora basta a tolerância de ponto. Partidos pouco recetivos à ideia de decretar feriado a 12 de maio para igualar setores público e privado
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Sem tolerância para a tolerância de ponto, o constitucionalista e antigo eurodeputado do PS Vital Moreira acusou o governo socialista de ter tomado uma "oportunista e populista decisão", que beneficia uns em detrimento de outros. Já os partidos estão pouco recetivos à ideia de decretar feriado, como em 1967 e 1982, em vez da tolerância de ponto.

No seu blogue Causa Nossa, Vital Moreira escreveu que "este país não tem emenda". "Mais uma vez, os demais trabalhadores - onde, pelos vistos, deve haver menos crentes de Fátima e devotos do Papa do que entre os funcionários públicos - ficam de fora da benesse de mais um dia de folga, por não terem patrões tão piedosos como o Estado", justificou. E sentenciou: "Assim vão a laicidade e a igualdade entre nós..."

Outro constitucionalista está nos antípodas deste raciocínio. Para Paulo Otero, o princípio da igualdade não fica posto em causa. "É ver aquilo que se passa com a terça-feira de Carnaval, quando o governo dá tolerância de ponto à função pública e as entidades privadas podem ser obrigadas a trabalhar." Se "há uma prática já reiterada nesse sentido", como afirmou ao DN, "as entidades privadas não estão impedidas de poder conceder o mesmo", como também fazem no Carnaval.

A Lei da Liberdade Religiosa, que permite no seu artigo 14.º observar sob determinados critérios a "dispensa do trabalho, de aulas e de provas por motivo religioso", poderia ser invocada, mas Paulo Otero tem menos certezas. "Tenho algumas dúvidas, porque quem não é católico e não fosse ver o Papa também não tinha direito a beneficiar da tolerância de ponto", resumiu. E foi mais longe na sua observação. "Em último caso, se fôssemos puristas, aqueles que não têm religião ou religião católica não podiam beneficiar dos feriados católicos."

Segundo Paulo Otero, "um país não tem apenas como lei fundamental a Constituição escrita, há normas não escritas que têm um valor de normas constitucionais e uma delas é a tradição católica do Estado português e da maioria da população. Essa é uma norma estruturante da Constituição não escrita portuguesa", resumiu.

Para este constitucionalista, há suficientes exemplos para o defender: "O facto de o domingo ser o dia de descanso semanal é porque a tradição faz do domingo o "dia do Senhor""; é por isso que o Natal, o 15 de Agosto ou a Páscoa são feriados; ou "a colocação do nome de santos em freguesias, hospitais, ruas - são exemplos de uma tradição que é fonte de direito constitucional".

Essa tradição que é fonte de direito constitucional não esbarra no princípio da Constituição escrita que estabelece que as religiões são iguais? "Esbarra, no sentido em que condiciona, em que limita, em que derroga." E justificou-se Otero: "Eu diria que todas [as religiões] são iguais mas há uma que é mais igual do que as outras porque corresponde a um património de identidade cultural do povo português."

Outro constitucionalista, agora Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou na sexta-feira que é "sensato manter a tradição" de dar tolerância de ponto aos serviços públicos nas visitas papais. "As tolerâncias de ponto foram aprovadas por todos os governos quando vieram papas e nunca foram consensuais", sintetizou.

Em 1982, houve mesmo feriado (também o ditador Salazar o decretou em 1967, quando da visita de Paulo VI). O governo da AD de Pinto Balsemão determinou "feriado nacional obrigatório" a 13 de maio de 1982, na primeira visita de João Paulo II, dando "tolerância de ponto, em vários períodos, nalguns concelhos do país". Em 1991, 2000 e 2010, repetiram-se as tolerâncias de ponto.

Consultados pelo DN, os partidos parlamentares mantêm a sua concordância com a decisão tomada pelo governo. O PSD e o PCP remeteram para a sua posição de acordo (apesar das dúvidas comunistas sobre a separação entre igrejas e Estado); o BE, que aceitou a tolerância de ponto, ironizou agora que "deviam ser repostos os três dias de férias retirados por PSD-CDS"; só o PEV respondeu "que a fazer alguma coisa deveria ser igual para todos". PS, CDS e PAN não responderam. E o gabinete do primeiro-ministro também nada disse.

Pelos bispos, António Marto, de Leiria-Fátima, já se disse satisfeito, resumindo a tolerância de ponto a "um gesto de cortesia", "com o Papa" e "os peregrinos católicos". Se não houvesse essa folga, "os peregrinos não [deixariam] de vir", afirmou.

Nem só de papas se tolera o ponto

O governo socialista de José Sócrates aprovou a 11 de novembro de 2010 uma tolerância de ponto para 19 desse mês no concelho de Lisboa "por razões de segurança" devido à realização da Cimeira da NATO.

Na altura, o anúncio foi contestado pelo presidente da câmara da capital, o também socialista António Costa, hoje primeiro-ministro. Para "assegurar o normal funcionamento da cidade" e combater "os graves prejuízos para os lisboetas, a economia da cidade e todos os que nos visitam", Costa recusou aplicar nos serviços municipais de Lisboa a tolerância decretada pelas "autoridades nacionais".

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