Conspiração contra o mundo

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Os meus deveres profissionais sofreram muito com as eleições americanas. Ao contrário de muita boa gente, não fiquei acordado durante toda a noite. Quando acordei, olhei para o telemóvel, vi as notícias e fiquei mais triste do que chateado.

O pessimismo bateu-me forte. Melhor, acrescentei mais pessimismo ao que já venho a sentir há bastante tempo. Aquela sensação de que a minha cadeira de velho não será tão confortável como previa, que vivi a minha juventude e a minha meia-idade em bem melhores tempos do que os que aí vêm, que os meus filhos viverão num mundo muito pior do que aquele em que vivi e ainda vivo.

Eu estava bem acordado no tempo do império soviético e não era dos que ignoravam a terrível ditadura que dominava metade da Europa e influenciava boa parte do mundo. Mas assisti à queda do muro, à derrota de muitas outras ditaduras e à vitória moral e real da democracia liberal. Afiançaram-me mesmo que era a vitória final e durante uns anos, infelizmente breves, acreditei que era verdade.

A Europa estava unida e continuou durante muito mais tempo. A Europa unida e sem guerras durante dezenas de anos, uma coisa jamais vista, algo de inimaginável para qualquer viajante no tempo. Uma Europa que se ia alargando baseada em valores como a solidariedade entre povos que sempre viveram desconfiados uns dos outros, vivendo em democracia, multicultural, sem fronteiras. Só os rapazes e raparigas da minha idade conseguem perceber o que foi a primeira vez que passámos de carro pelas antigas fronteiras europeias.

Havia umas nuvenzitas, mas o sol era radioso e parecia que nunca se apagaria. Afinal foi-se apagando. Os milhares de livros com os milhões de razões possíveis estão aí, o facto é que as pessoas foram ficando descontentes. Começámos a perceber que os nossos filhos iam viver pior do que nós, que o trabalho e o esforço não chegavam para termos melhores condições de vida, que havia gente que ficava cada vez mais rica enquanto a educação e a saúde pública pioravam, crescia a sensação de que demasiadas vezes os servidores públicos não nos serviam mas se serviam de nós.

Desiludimo-nos. Com a desilusão veio a procura de novas soluções que nos pusessem outra vez no caminho certo e não há nada como uma pessoa revoltada e desiludida para ser iludida. E aí está o nosso mundo sob as ameaças da intolerância, do racismo, da xenofobia, do nacionalismo, das soluções populistas que são só o anunciar de novas ditaduras. A democracia, os direitos humanos, os valores que julgávamos sagrados eram tão frágeis que não aguentam que um pai julgue que o filho vai ter menos oportunidade do que ele. Tão frágeis que um qualquer vendedor de verdades alternativas é levado a sério.

Isto é sobre as eleições americanas. Biden parece ter ganho, mas os EUA continuam a perder. Estas eleições e o que se passou antes e se vai passar mostram uns estados que de unidos já não têm nada. Dois campos que não se ouvem, que se recusam sequer a conversar, com valores e verdades sem pontos de contacto. E que fique claro, não é de agora, mas negar que se agravou muito é como negar o aquecimento global.

Não acredito na insensibilidade de muitos eleitores Trump à imensa quantidade de mentiras, vigarices e indecências do homem, mas parece contar mais ser contra o outro. No fundo, o Trump não é o filho da mãe deles é o filho da mãe que é contra os outros. E isso parece chegar até para se votar num tipo sem o mínimo de decência, um aldrabão encartado que não hesita em pôr em causa sequer o mais sagrado ato numa democracia, a eleição.

Uma comunidade vive das pontes que os membros constroem. Vive de um conjunto de valores e princípios comuns. Vive de verdades partilhadas. Uma comunidade não consegue sobreviver a uma tensão tão grande como a que se vive nos Estados Unidos, não consegue manter-se minimamente coesa quando 1% domina 40% da riqueza e não a redistribui, imagine-se uma democracia.

Tudo o que acontece nos Estados Unidos diz-nos respeito, influencia-nos diretamente e dá-nos lições.

Quando queimamos as pontes queimamos a nossa comunidade, nada sobrevive a isso.

E sempre presente a América. A grande América, disparatada, mas a campeã da liberdade, da democracia, da decência. Sempre a cometer erros, sempre a não perceber o resto do mundo, como um adolescente desajeitado e bruto mas com o coração no sítio certo.

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