Conseguirá o Irão responder ao surto de coronavírus apesar das sanções dos EUA?

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O mundo está a enfrentar uma devastadora pandemia que já matou mais de 133,000 pessoas e está a ameaçar seriamente a vida de muitas outras, levando o total de infectados no mundo inteiro para mais de 2 milhões de pessoas. O surto já provocou uma grande crise de saúde em diversos países e graves perturbações na economia global. Os governos das regiões desenvolvidas ou em desenvolvimento do mundo, incluindo Portugal, tomaram as medidas necessárias para conter a propagação do vírus e elaboraram planos de resgate e estímulo, de modo a salvar as economias durante a paralisação.

Muito se tem falado sobre os esforços do Irão no combate à doença desde o início da pandemia. O país tem sido devastado pelo coronavírus nos últimos dois meses e o vírus continua a espalhar-se por todo o país. O primeiro caso de coronavírus foi diagnosticado a 19 de fevereiro de 2020 e, desde então, mais de 78.000 casos foram identificados com mais de 4.860 mortes registadas, colocando o Irão entre os dez países mais atingidos.

Ao contrário das alegações tendenciosas de fontes fora do Irão, de que o governo demorou a reconhecer a existência do covid-19 e reagiu de forma lenta a conter o vírus, o governo do presidente Rouhani tem feito esforços para acompanhar a sua rápida disseminação. Recorrendo a estruturas de saúde e profissionais médicos considerados entre os melhores da região, com mais de 1.000 hospitais e 30.000 clínicas, o Irão adotou medidas necessárias e preventivas que abrangem o país inteiro de modo a prevenir, controlar e impedir a propagação do contágio, incluindo uma ordem de recolhimento total nas vésperas do ano novo persa - Nowruz - que entrou em vigor a 20 de março. Outras medidas adoptadas incluem abertura e/ou conversão de 45 laboratórios de diagnóstico em todo o país, suporte de todos os custos de testes, tratamento e internamente pacientes infectados com o coronavírus pelo governo e a segurança social, entrega de pagamentos em dinheiro equivalentes a 1,5 mil milhões de dólares a mais de 23 milhões de iranianos. Com estas medidas, o governo está a fornecer todo o apoio possível ao sistema de saúde para identificar e tratar doentes, reduzir a taxa de transmissão e combater esta doença de forma eficaz. O facto de que a taxa de recuperação no Irão tem sido promissor desde o início do surto é uma boa notícia.

Em contrapartida, a gravidade da situação e os riscos inerentes a esta pandemia global são tão sérios e perigosos que nenhum Estado sozinho consegue enfrentá-la de forma individual ou isolada. Esforços colectivos e coordenados a nível mundial são pré-requisitos para enfrentar este desafio que ameaça o planeta. No entanto, são duplos os desafios que dificultam os esforços do Irão em erradicar a doença. Por um lado, tal como outros, o país tem enfrentado carências e obstáculos em tempo de pandemia. De facto, devido a sanções e da queda do preço do petróleo, Teerão não tem recursos suficientes para paralisar a economia e implementar medidas de isolamento social e quarentena de forma eficaz em todo o país de modo a conter o surto. Como o presidente da câmara municipal de Teerão, Pirouz Hanachi explicou recentemente num artigo de opinião publicado no Guardian, é quase impossível impor medidas de isolamento social, uma vez que o governo seria incapaz de apoiar financeiramente a população activa a manter-se em casa.

Por outro lado, o Irão está a sofrer com o terrorismo económico e sanções unilaterais dos EUA contra seu povo, incluindo aqueles afetados pelo covid-19. O embargo norte-americano não só proíbe empresas e indivíduos americanos de realizar comércio legal com homólogos iranianos, mas, como as sanções são extraterritoriais, todos os outros países e empresas também são intimidados a absterem-se de fazer negócios legítimos com iranianos, incluindo a venda de medicamentos. Sob tais condições, é triste e lamentável que nossos esforços sejam intencionalmente impedidos e nossos autossacrifícios implacáveis sejam prejudicados pela campanha deliberada de obstrução projetada pela administração norte-americana de modo a privar o Irão de seus próprios recursos financeiros, essenciais para combater a doença. Os Estados Unidos chegaram ao ponto de impedir transações financeiras internacionais e o envio de necessidades vitais, como medicamentos e equipamentos médicos, levando à escassez aguda desses itens, incluindo kits de teste, ventiladores e dispositivos respiratórios.

Perante a gravidade da situação e para salvar o seu povo, o Irão iniciou uma campanha internacional contra as sanções ilegais dos EUA. A 14 de março, numa carta dirigida a vários chefes de governos estrangeiros, o presidente Rouhani pediu que ajudassem a evitar as sanções dos EUA, tendo em consideração a situação de epidemia de coronavírus no país. Em meados de março, o governador do Banco Central do Irão pediu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) um empréstimo de emergência de 5 mil milhões de dólares para combater a pandemia - um pedido que poderá ser bloqueado pelos EUA. O ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Mohammad Javad Zarif, também publicou uma lista de itens e equipamentos médicos urgentemente necessários para os profissionais de saúde iranianos, como ventiladores e equipamentos de proteção individual. O Ministro também escreveu uma carta ao secretário-geral das Nações Unidas sobre a necessidade de levantar as sanções ilegais dos EUA durante surto. Representações diplomáticas iranianas no exterior, incluindo a nossa embaixada em Lisboa, também lançaram uma campanha para mobilizar assistência internacional de modo a apoiar a luta do Irão contra o covid-19 e aumentar a consciência global sobre o impacto negativo das sanções dos EUA contra o Irão durante a pandemia.

No entanto, fora do Irão existe uma preocupação crescente de que, caso o Irão não conter o surto, isso terá um impacto terrível, não apenas para iranianos, mas também para os países vizinhos e no mundo em geral. Investigadores da prestigiada Universidade de Tecnologia Sharif no Irão concluíram que, no pior cenário, se o governo não adoptar medidas rigorosas de quarentena e o público não seguir à risca as diretrizes, no pico da pandemia previsto para o final de maio,
até 3,5 milhões de iranianos poderão morrer devido ao vírus. É por isso que vários membros do Congresso dos EUA progressistas, alguns países da UE, Rússia e China, líderes mundiais, incluindo o Papa Francisco na sua mensagem de Páscoa, o ex-vice-presidente Joe Biden, o secretário-geral da ONU António Guterres e a alta-comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, um grupo de 24 diplomatas e oficiais de defesa internacionais, organizações internacionais, o Grupo 77 + China e o Movimento dos Países Não-Alinhados (NAM), conselhos editoriais e ativistas da sociedade civil terão exigido ao governo de Trump que levante sanções impostas ao Irão enquanto o país enfrenta a pandemia de coronavírus. Além disso, várias reportagens e análises dos meios de comunicação, incluindo um editorial do New York Times, documentaram o impacto negativo das sanções dos EUA na resposta iraniana contra o vírus mortal, e dezenas de artigos de opinião têm apelado ao presidente Trump que siga seus antecessores e alivie as sanções.

O governo Trump, no entanto, não mostrou quaisquer sinais de atender a esses pedidos e ainda não demonstrou interesse em querer aliviar a pressão sobre o Irão. De fato, desde que a crise do covid-19 começou, o governo norte-americano anunciou novas sanções contra o país, o que prova que está viciado em sanções. Aparentemente, as opiniões do governo Trump estão alinhadas com os falcões de Washington que há anos estão empenhados em derrubar a República Islâmica e podem até ver a presente crise como uma oportunidade para que isso aconteça. A insistência do governo Trump em manter as sanções em vigor contra o Irão enquanto este enfrenta a pandemia - e com o óbvio fracasso das sanções até à data - sugere que a crueldade e o comportamento desumano não são derivados necessários das sanções, mas sim, o derradeiro objectivo. No entanto, a realidade está longe de ser o sonho de longa data dos neoconservadores em Washington de conseguir uma "mudança de regime". Pelo contrário, as últimas quatro décadas da fracassada estratégia norte-americana em relação ao Irão demonstram que políticas de sanções e pressões apenas reforçam a solidariedade internacional perante uma ameaça externa, independentemente das rivalidades políticas internas.

É um facto inegável que, desde 8 de maio de 2018, quando os Estados Unidos renegaram unilateral e ilegalmente seus compromissos para com a Resolução n.º 2231 (2015) adoptada pelo CSNU, têm como alvo persistente o comércio legal iraniano com outras nações, o que foi explicitamente garantido pelo Plano de Ação Conjunto Global (PACG), do qual o Irão era parte integrante, mesmo um ano após a retirada unilateral dos EUA do pacto. Recentemente, porém, e após o surto do Coronavírus, os EUA estão a usar de maneira vergonhosa a situação para promover sua campanha indiscriminada de pressão econômica e substituí-la com um acto imoral de impedir o acesso do Irão a suprimentos médicos. Os desenvolvimentos atuais têm demonstrado manifestamente a real intenção e objetivo da chamada campanha de "pressão máxima" dos Estados Unidos contra a República Islâmica: um castigo colectivo contra a nação iraniana. Como escreveu o ministro Zarif num recente tweet: "Covid19 foi uma oportunidade para os EUA abandonarem seu vício em sanções, mas agora viverá na infâmia na memória do nosso povo."

Enquanto o vírus continua a devastar cidades e comunidades por todo o mundo e o número de vítimas aumenta a um ritmo alarmante, é um facto que o covid-19 não se restringe a fronteiras geográficas nem diferencia os povos por raça, cor, nacionalidade, género, idade, classe social, etc. O vírus pode ser contido e mitigado com medidas de isolamento de casos e rastreio de contactos, mas não pode ser derrotado de forma isolada. É um inimigo comum da humanidade e todos estamos a passar pelo mesmo risco. Estamos todos a bordo do mesmo barco. Qualquer acção abrangente contra uma das piores ameaças à civilização humana exige cooperação internacional, pois nenhuma cadeia é mais forte do que o seu elo mais fraco. Conforme enfatizado num relatório recente do secretário-geral da ONU sobre o impacto do covid-19: "Temos de responder de forma decisiva, inovadora e em conjunto de modo a superar a propagação do vírus e enfrentar a devastação socioeconómica que o covid-19 está a causar em todas as regiões e países... O que o mundo precisa agora é de solidariedade com a qual possamos derrotar o vírus e construir um futuro melhor."

Numa situação preocupante decorrente de possíveis comportamentos de caos e intimidação a nível global, a cooperação internacional para a erradicação da doença não é uma opção, mas sim, uma obrigação. É no mesmo contexto que ajudar o Irão a conter o vírus não é apenas do interesse de 83 milhões de iranianos, mas também de milhões de vizinhos em países onde guerras, ocupação, terrorismo e violência extrema destruíram os sistemas de saúde e reduziram a capacidade de enfrentar catástrofes dessa magnitude. Alguns países vizinhos e amigos do Irão - como a China, Rússia, França, Alemanha, Reino Unido, Azerbaijão, Turquia, Qatar e Kuwait - perceberam a gravidade da crise e foram céleres em ajudar o país com assistência financeira e ajuda humanitária. Agradecemos o gesto de boa vontade, mas isso é insuficiente. A comunidade internacional como um todo deve exigir ao governo Trump que levante as sanções ao Irão para que Teerão possa ter acesso aos recursos necessários para conter esta doença e recuperar sua economia após a pandemia. Todas as nações e governos que respeitam a lei devem não apenas expressar sua voz exigindo o levantamento total e incondicional de todas essas sanções desumanas, mas também desconsiderar as sanções unilaterais norte-americanas impostas a outras nações, incluindo as sanções impostas ao Irão, que são uma flagrante violação das leis internacionais e da decisão do Tribunal Internacional de Justiça em outubro de 2018.

Se os líderes mundiais não aproveitarem a oportunidade de encarar a mudança para enfrentar melhor futuras crises globais, continuaremos todos altamente vulneráveis a doenças transmissíveis, catástrofes ambientais, aquecimento global, terrorismo, extremismo violento e outras ameaças comuns. Está na hora do mundo inteiro unir-se contra um inimigo comum: o coronavírus.

Embaixador do Irão em Portugal

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