"Confundem os meus princípios com mau feitio"

Apresenta hoje no palco do Tivoli, em Lisboa, um disco que se fez esperar, fazendo jus ao título: "Peregrinação". E aqui reconstitui alguns capítulos da viagem, que passa por Bragança e Buenos Aires, por José Afonso e Amália Rodrigues. E por um compasso muito próprio, num percurso feito de convicções, trabalho e talento.
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Na periferia de Bragança, a tarde gela, mas a conversa aquece, sobretudo quando Dulce Pontes mergulha nas convicções que a acompanham há mais de três décadas ou quando recorda alguns episódios. Estará mais serena, mas nem por isso menos assertiva. Ri-se quando fala do futuro longínquo, "a cantar para as galinhas". A conversa também há de passar pelos filhos, José (baterista convidado pela mãe para uma participação no disco) e Maria, mas vale sobretudo como um reencontro que renova a certeza de que esta mulher prefere quebrar a torcer, teimando em seguir a sua própria via. Canta como sempre, encanta como nunca.

Podemos começar a conversa pela própria estrutura do novo álbum, Peregrinação - dois discos, um em Português, outro sobretudo em Castelhano... Porquê esta distinção, porquê duas partes, porquê separadas e não entremeadas?
Houve um momento em que pensei misturar, mas não fazia sentido nenhum... Há uma série de características, das poéticas às dos arranjos, que aproximam alguns temas e afastam outros... Dentro da Peregrinação, há o Nudez e o Puertas de Abrigo. O Nudez tem sobretudo uma visão muito interior e o Puertas de Abrigo é mais virado para o exterior. Além disso, estar constantemente a mudar de idioma também obrigaria quem ouve a uma ginástica mental que só contribuiria para a dispersão... O Nudez, com exceção de um tema orquestral, tem ainda uma unidade particular nos arranjos, muito à pele ou até quase sem pele... Mas tudo isto carece de premeditação: fui fazendo e, a partir de certa altura, o trabalho começou a ter vontade própria, a impor-se... Depois, fiz em certa medida o que faço nos concertos: deixei correr, fugindo ao óbvio, arriscando...
À semelhança do que faz nos espetáculos, em que não se refugia nem se esconde nos grandes êxitos...
Precisamente. Cansa-me muito a repetição, gosto muito de guardar um cantinho para a surpresa e há muito tempo que testemunho que as pessoas têm abertura de espírito suficiente para acarinharem de imediato as novidades que lhes servem. Aliciante, para mim, é saber que nos concertos de apresentação do Peregrinação já vão aparecer temas que ainda estão guardados para um disco futuro, que ainda não foram gravados... De qualquer forma, a equipa que trabalha comigo já está habituada a que, por exemplo, eu faça as listas das canções 15 minutos antes dos espetáculos começarem, de acordo com o apetite e a sensibilidade do momento. Por isso é que, nos casos em que os programas são impressos, com antecedência, lá aparece a ressalva "sujeito a alterações"... Para mim, a coisa é simples: se nós não estamos iguais todos os dias e se cantar faz parte integrante da minha vida, porque não hei de eu alterar os alinhamentos em função dos estados de alma? Para mim, é fundamental não cair no "vira o disco e toca o mesmo"... Preciso de correr, como os cavalos...
Precisa de se surpreender a si própria, além de surpreender o público?
Eu diria antes que faço uma viagem diferente da do dia anterior, quando introduzo alterações e procuro corresponder ao que sinto, e que também não é o mesmo da véspera... Curioso é sentir sempre o apoio dos músicos, que vão estando preparados para tudo: eles gostam, é um desafio... Se entendermos o desempenho dos músicos como uma conversa, veremos que é precisa cumplicidade, ligação, mas também não falar sempre das coisas da mesma maneira, pela mesma ordem, no mesmo tom... Daí que, nos meus arranjos, haja sempre espaço aberto para o improviso.
Em matéria de alinhamentos, como é que lida com as "cobranças" do público, com os chamados temas "obrigatórios"?
Lido bem e percebo que, para o público, seja uma questão de identidade... Desde que eu possa cantá-las na fase do concerto que me pareça apropriada, desde que possa ir modificando esses temas de acordo com o tempo e com a minha abordagem... Mas, por exemplo, não me custa - pelo contrário - voltar à Canção do Mar ou à Lágrima... Por sinal, a Canção do Mar tem andado numa fase celta, e são essas transformações que me vão mantendo o gozo de regressar sempre a essas canções mais emblemáticas... Isto até ao momento em que se chega à versão final e, a partir daí mais nada, não vale tentar forçar porque, nesse caso, estamos a servir-nos da música e não a servir a música, que é o que eu gosto de fazer.

Princípios morais

Vai passando, por aquilo que diz, uma ideia de não ceder, de recusa dos compromissos que estragam a sua convicção artística. Isso é uma marca pessoal?
É... Penso que sim. E é algo que, muitas vezes, é confundido com mau feitio... Quando não gosto, não gosto. Se fizer algo sem acreditar, não me sinto bem comigo própria, depois... Podem vir propor-me as coisas mais mirabolantes do mundo, coisas "muito boas" para a carreira, mas se eu não as sentir, nada feito - se faltar à verdade comigo mesma, como é que vou ser verdadeira em frente a uma plateia? Não é só uma questão de gosto, mas de princípio. Princípio moral, mesmo. Não é arrogância, não é radical, é só assim... Prefiro permanecer inteira e pensar que estou aqui há quase 30 anos...
Se bem que o "aqui" tenha mudado muito, da capital ou arredores para a zona de Bragança. Isto influencia a maneira de ser e de estar na música?
O meu pai é alentejano, de Arraiolos... E eu traço um paralelo, com todas as diferenças envolvidas, entre o Alentejo e Trás-os-Montes... Sempre gostei do campo, sempre gostei do silêncio... Ora eu vivi na Arrábida e na zona de Sintra, mas depois tinha que andar ali no meio daquele trânsito todo, daquela confusão... Depois percebi que aquilo não tinha a ver comigo. Nunca me identifiquei com a pressa, com a distância entre as pessoas... Aqui, eu faço o meu tempo. Até na música, com o espacinho que tenho em casa, que me permite evitar os horários de estúdio - se posso estar ali sossegada às quatro da manhã, quando quero ou preciso, vou até lá abaixo, porque não? Há aspetos em que a solidão, quando significa estar consigo mesmo ou mesma, é uma bênção... Basta-me pensar no caso do Nevoeiro, que começou depois de eu ter feito o jantar para os miúdos... Fui lá para baixo, abri um livro e saltou-me o Nevoeiro. Já não o larguei, embora eu não seja do tipo fossão, sou mais intuitiva... Mas dispus do meu tempo, continuei enquanto quis... Quanto ao resto, com as novas formas de comunicar, acabou-se um bocadinho aquela coisa das distâncias. Eu posso mandar uma música para Buenos Aires e recebê-la de volta já com o charango do Jaime Torres...
O melhor de dois mundos: a tecnologia casada com a paz do campo... Por falar em casamentos, ainda se sente a meio caminho entre José Afonso e Amália Rodrigues, cujos patrimónios volta a abordar neste disco?
Não sei se essa ideia de "meio caminho" é muito rigorosa. Do lado da composição, eu sou bastante "afonsina", como acho que fica demonstrado (outra vez) neste disco, em canções como o Va de Retro ou o Canto do Risco. De resto, diria que a minha outra influência maior, a compor, vem da clássica, o que tem a ver com a minha formação. Mas essas duas referências, a Amália e o Zeca, hão de estar sempre comigo. E não se trata de tentar conciliar o inconciliável, por terem supostamente duas visões políticas diferentes. Para mim, aquilo é música, e boa, que é o que me interessa... Ainda por cima, desta vez são escolhas muito particulares: o Grito foi o tema que a Amália escolheu para o seu próprio funeral, tem um peso e uma letra que chega para destroçar... Já o Grândola, Vila Morena, de que já tinha feito uma abordagem que não me satisfez, senti vontade de lá voltar a partir do momento em que achei que a canção estava a ser banalizada, com uma certa falta de respeito... Tentei fazê-la menos marchada, mais interior, mais presa ao lado de utopia...

Descoberta argentina

Já no outro disco, Puertas de Abrigo, e sem contar com Aznavour ou Albeniz, quem junta Piazzolla, Ariel Ramirez, Carlos Gardel e Jaime Torres (a esse já lá vamos em particular), pretende o quê, convocar a seleção da Argentina?
(risos) Isso passa pela minha ida a um festival musical em Cordoba, Argentina. Fui em representação de Espanha...
De Espanha?
Pois, Portugal não tem representação, os senhores convidaram-me e eu fui... E ainda bem, porque de repente se abriu um mundo musical à minha frente que me deixou banzada... Eu conhecia Tango, conhecia um clássico como o Alfonsina y El Mar (do Ariel Ramirez), que já tinha tentado cantar mas que deixava sempre lavada em lágrimas, conhecia a Mercedes Sosa - mas não estava à espera de uma dimensão tão grande do folclore argentino. Aquilo que está na peregrinação é apenas uma parte: já gravei um dueto com o Leon Gieco, já trabalhei com a Mariana Carrizo, tudo para utilização futura. Aquilo foi mesmo uma paixão, é irresistível aquele universo...
Um caso particular é o Jaime Torres, talvez o maior tocador de charango da Argentina, da América Latina, que há muitos anos passou por Portugal para tocar a Misa Criolla do Ariel Ramirez, mas que não é conhecido por cá. Como é que o descobriu?
Foi através do pianista Juan Carlos Cambas, que é uma espécie de meu padrinho nesta "questão" argentina. Foi incansável, sempre a mostrar-me temas, a apresentar-me músicos, ele que chegou a ser pianista da Mercedes Sosa... O Jaime foi de uma generosidade incrível, como são eles todos, e enviou-me um tema, o Barro y Altura, qe eu adorei e acabei por incluir... Pelo meio, quando estive em Buenos Aires, o Jaime apareceu, juntamente com uma série de outros músicos. Houve um concerto em que eu só disse antecipadamente que ia haver muitas surpresas. Depois, eles iam entrando - o Jaime, o Leon, o Juan, a Amelita Baltar - e o público ia delirando... Posso dizer que era como se os conhecesse de sempre, alguma coisa maior do que a lógica, algo que não encontrei em mais parte nenhuma, com excepção de Cuba e de alguns músicos (o Kepa Junkera o Carlos Nuñez, a Estrella Morente) que eu considero como irmãos...
Essas três referências dão que pensar: a Dulce tem trabalhado muito com espanhóis, se pensarmos ainda no Luis Pastor e noutros...
Não corra o risco de chamar espanhol ao Kepa, que isso pode ser perigoso (risos), que o homem é basco e orgulhoso... Quanto à constatação, a verdade é que, nos últimos anos, eu tenho cantado sobretudo em Espanha, algo que também me aproximou do idioma...

Editoras e negócios

A "deslocação" da base de trabalho, menos em Portugal, mais em Espanha, passa pela sua conhecida dificuldade de relação com as editoras discográficas?
Qual relação? Não há relação... E eu estou muito satisfeita com a minha própria editora, a Ondeia Música, que vai dando os passos que pode e que eu quero... Quanto ao resto, a ideia que tenho é que a situação cada vez está pior... Pergunto eu: que sentido faz uma editora multinacional (não estou a generalizar, nem posso afirmar que sejam todas) querer receber uma percentagem das receitas dos concertos? Mas estão a brincar connosco? Quando um artista tem um royaltie de 20 por cento, isso é considerado alto. Mas são 20 por cento sobre o preço de fabrico, não sobre o preço de venda. E ainda querem ir buscar dinheiro aos concertos? Nunca, jamais... Depois há os que nos querem impingir reportório e que nos atiram para cima canções inacreditáveis, só porque têm os respetivos autores sob contrato de publishing...
Ou seja, acabam por receber duas vezes...
Há mais: e as capelinhas que as editoras fazem com televisões e com rádios, com a Imprensa, e que ajudam muito mais a excluir do que a incluir e a divulgar?
Isso significa que este disco é inteiramente pago por si?
Este disco e os dois anteriores, sim... Resumindo: dei-me bem com a Universal Espanha. E é tudo. Prefiro assim: pago um preço pela liberdade e pela possibilidade de escolha. Mas faço-o de uma forma consciente, sabendo que os interessados não compram um disco meu por ter o selo desta ou daquela editora, mas porque é meu...
Por esse preço passa a circunstância de este disco ter demorado mais tempo a chegar do que estava previsto?
Também, mas se ele só sai agora - e ainda bem, porque eu precisei de tempo para chegar a uma visão mais clara das coisas -, isso prende-se mais com outros fatores... Concretamente, houve uma fase em que me senti um bocadito baralhada, e até tinha material para fazer quatro discos, nada menos... Precisei de parar, de voltar a ouvir tudo, ainda fui gravar outros temas, mas insisto: ainda bem... Pelo meio, eu permiti-me parar alguns meses, sair do reboliço, afinar a pontaria. Acho que deu certo.

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