Conflito congelado ou uma guerra em banho-maria

Arménia e Azerbaijão não baixam as armas. Apesar do cessar-fogo assinado em 1994, o acordo de paz nunca chegou. Mais de duas décadas volvidas sobre a guerra do Nagorno-Karabakh (NK), os dois países continuam a enfrentar-se. Na linha de contacto entre o Azerbaijão e o NK todos os dias há trocas de fogo.
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Vai desfiando retalhos da vida. Contando de si e dos seus. Alternando entre sorrisos e lágrimas, que por vezes teimam em acumular-se-lhe nos olhos. Lida Sirsigsyan tem 82 anos e as feições não desmentem a idade. As rugas são profundas. Escavadas pelo passar do tempo e pelos lutos que a vida lhe foi pondo à frente. O pai morreu-lhe num campo de batalha da Segunda Guerra. E três dos sete filhos tiveram o mesmo destino durante o conflito que, no início da década de 1990, pôs o Nagorno-Karabakh em destaque nas notícias. Em abril do ano passado, voltou a temer o pior, quando Talish, a aldeia onde vivia, junto à fronteira noroeste do território, foi atacada pelos militares do Azerbaijão. Os combates entre as forças azeris e arménias duraram apenas quatro dias, mas bastaram para mostrar que, apesar do cessar-fogo assinado em 1994, a paz e a segurança estão longe de serem realidades palpáveis.

O conflito no Nagorno-Karabakh remonta aos anos 20, quando, na ressaca da Primeira Guerra, José Estaline decretou que esta região autónoma e de maioria arménia e cristã passaria a ser parte integrante da então recém criada República Socialista do Azerbaijão, predominantemente habitada por muçulmanos xiitas. As décadas seguintes, vividas debaixo do unificador manto comunista, foram de relativa acalmia, mas tudo mudou com o colapso da União Soviética. Pouco tempo depois de o parlamento do Azerbaijão ter revogado o estatuto autónomo do Nagorno-Karabakh, em dezembro de 1991 a região declarou unilateralmente a independência. A tensão e os confrontos intensificaram-se e a guerra instalou-se. As armas só se calariam em 1994, com a vitória arménia. Desde então, o conflito ficou congelado. A paz nunca foi assinada e o país não é reconhecido por qualquer Estado-membro das Nações Unidas. Além de dominarem o território do antigo oblast soviético - composto por cinco províncias -, as forças arménias, em resultado das conquistas da guerra nos anos 90, controlam também outras sete regiões azeris, permitindo assim uma faixa de ligação com a Arménia.

A paz podre colapsou no ano passado. Nas primeiras horas da madrugada de 3 de abril, a aldeia de Talish acordou debaixo de fogo. "Saí de casa quando começaram a disparar. O meu marido pediu-me para não o fazer, mas eu disse-lhe que ia. Se me vão matar que me matem lá fora, mas não aqui dentro", recorda Lida. Uns vizinhos meteram-na dentro de um carro para fugirem do ataque. Zora, o marido, recusou-se a ir. Explicou que não queria abandonar a casa. Que não iria deixar para trás as fotografias e as memórias dos filhos que morreram na guerra.

Casados há 61 anos, durante "três ou quatro dias" Lida e Zora nada souberam um do outro. Hoje, tal como outras 45 famílias de Talish, vivem em Alashan, um pequeno lugar que fica a cerca de 20 quilómetros. Moram em habitações improvisadas, em pré-fabricados disponibilizados pelo governo, enquanto esperam pelo dia em que poderão regressar a casa. Por ora, Talish é uma aldeia deserta, com grande parte das casas destruídas pelo ataque das forças azeris. Os trabalhos de reconstrução vão avançando aos poucos, mas faltam longos meses até que os habitantes possam voltar. Entre gargalhadas, crianças correm pelo chão de terra batida. O vento agita os lençóis postos a secar na rua, pendurados numa corda estendida entre duas árvores. Seriam retalhos de uma vida normal, se Alashan não fosse apenas um pedaço de terra emprestado.

A escola e o lugar das mortes

A casa, de tijolos à mostra e com um telhado de zinco, fica à beira da estrada de terra batida. A vegetação, contra a qual ninguém luta há ano e meio, vai avançando em direção às paredes. A porta está aberta. Lá dentro, na sala de estar, o capitão Gegham Grigoryan, assessor de imprensa do exército do Nagorno-Karabakh, aponta para os buracos de balas no sofá. "A mulher estava aqui deitada quando o corpo foi encontrado. Tinha 95 anos. E aqui estava o marido", explica o soldado. "Eles entraram por ali e mataram-nos. Primeiro mataram-nos e depois cortaram-lhes as orelhas". Valera e Razmela Khalapyan foram duas das três vítimas civis em Talish. Apesar da brutalidade da imagem, no ano passado a fotografia dos cadáveres foi amplamente divulgada na imprensa Arménia, para servir como prova de um crime de guerra. Quando o ataque à aldeia começou, o filho do casal fugiu de carro com a mulher e os cinco filhos. Voltaria horas mais tarde para tentar salvar os pais, mas era demasiado tarde. Encontrou os dois estendidos no chão. As marcas de sangue já foram lavadas, mas os desenhos das crianças da família continuam pendurados na parede de um dos quartos, como fantasmas coloridos, feitos de traços ingénuos, que vão velando o resto do espaço vazio.

Muito perto da casa de Lida e de Zora, fica a escola da aldeia, de frente para as posições azeris. Os vidros estão partidos. Espalhados pelo chão há livros, fotografias, sebentas, desenhos e trabalhos dos alunos. "A existência desta escola em Talish vem provar que nem os bombardeamentos (1991), nem os disparos de artilharia (1990-1992), nem o afastamento à força das populações (1992-1994) foram capazes de quebrar a vontade de um povo que aceitou o cristianismo como religião do Estado no ano de 301", pode ler-se, quase por ironia, num cartaz pendurado numa das salas de aula agora vazias.

As trincheiras e a limpeza da capital

A chamada linha de contacto entre o Nagorno-Karabakh e o Azerbaijão é uma zona fortemente militarizada em ambos os lados. É aí, na fronteira, que se percebe que a expressão "conflito congelado" tem muito de eufemismo. Neste ano, em meados de outubro, as baixas arménias ascendiam a 47 soldados. E, na guerra dos quatro dias no ano passado, morreram mais de 90. Sobre o número de vítimas azeris não há informação disponível. O governo de Baku não divulga as baixas.

"O regime de cessar-fogo é violado quase todos os dias", garante o major Hakobyan Rudik, comandante deste posto situado na frente noroeste do território. "Os últimos disparos aconteceram há apenas quatro horas", acrescenta. Um periscópio, instalado nas trincheiras escavadas na terra quase branca, permite observar à distância as posições azeris. Mas um olho que não esteja treinado para fins militares nada distingue, com exceção de casas inofensivas, isoladas e dispersas pela planície.

Na chamada guerra dos quatro dias, em abril de 2016, Rudik sofreu duas baixas no destacamento. Tem 30 anos e há nove que serve na linha da frente, mas muitos dos soldados que o acompanham são jovens com idades entre os 18 e os 20, que cumprem o serviço militar obrigatório de dois anos. A menos que seja necessário, os homens, por regra, não passam mais do que duas semanas seguidas na linha de contacto sem ir a casa. "Todas as famílias estão preparadas para que algo possa acontecer. Todos temos a guerra no nosso dia a dia, mas tentamos viver normalmente", sublinha o comandante.

Longe das trincheiras, Stepanakert é a capital do Nagorno-Karabakh. Com cerca de 55 mil habitantes, está longe de ser um lugar militarizado. Aqui, a menos que se fale nela, a guerra não se vê nem se sente. É uma cidade como quase todas as cidades do mundo. Com lojas, restaurantes, hotéis, crianças a caminho da escola, adultos nos afazeres da vida.

Artak Beglaryan nasceu em Stepanakert. Tinha seis anos quando a explosão de uma mina o deixou totalmente cego. O acidente aconteceu enquanto brincava com três amigos no quintal. Os pais colocaram-no num colégio em Ierevan, a capital da Arménia, vocacionado para ensino especial. A incapacidade de ver não o impediu de estudar. Licenciou-se na Universidade Estatal de Ierevan e é mestre em Ciência Política pelo University College, em Londres. Hoje, é porta-voz do governo do Nagorno-Karabakh.

Mais de duas décadas volvidas sobre o cessar-fogo de 1994, as minas são um problema quase ultrapassado. A Halo Trust, uma ONG com sede na Escócia, encontra-se desde 2001 a trabalhar em permanência na região e acredita que até 2020 a terra estará livre de minas. "Já desminámos 90% do território", informa Amasia Zagarian, um norte-americano, de raízes iranianas, que integra a equipa da Halo Trust. A contabilidade oficial mostra que, desde 1995, houve 287 acidentes com minas. Estes provocaram 374 vítimas, 78 delas mortais. No total, a partir do momento em que a ONG iniciou os trabalhos no antigo oblast soviético, quase 12 mil explosivos foram desativados.

Em Karega, região situada no estreito corredor de Lachin, que liga o Nagorno-Karabakh e a Arménia, é hora de almoço. Nazeli, uma mulher de 40 anos, está no período de descanso. Há um ano e quatro meses que trabalha como desminadora. Sentada no chão, numa vereda inclinada no meio do bosque, explica que sente que as suas funções são importantes. Não só para salvar vidas, mas para que as gentes possam usar as terras para apanhar lenha e recolher outros alimentos.

Discurso de ódio

"Estou convencido de que a paz será impossível nas próximas décadas", lamenta Artak Beglaryan. "Neste momento os azeris estão envenenados com ódio para com os arménios por culpa da propaganda das autoridades. Serão necessárias várias gerações para mudar isso. A paz é impossível quando a estratégia de um dos lados é matar o outro", continua o porta-voz do governo, numa conversa à varanda de um restaurante na capital. Para exemplificar a diferença de atitude, Beglaryan recorre à retórica dos comunicados militares de ambos os lados: "Eles usam o termo "inimigo" e nós usamos "adversário". O nosso exército diz que "protege" e que "defende", mas o azeri fala em "vingança"". Com os olhos que não veem pousados no interlocutor, explica que a paz será impossível enquanto perdurar o vocabulário de ódio.

Não é difícil encontrar citações oficiais que atestam a agressividade das palavras. "Os nossos principais inimigos são todos os arménios do mundo", afirmou, em 2012, Ilham Aliyev, presidente do Azerbaijão, no cargo desde 2003, após suceder ao pai. "A Arménia, como país, não tem qualquer valor. No fundo é uma colónia, um território criado artificialmente em terras do Azerbaijão", sublinhou no mesmo ano.

Em setembro, dirigindo-se à Assembleia Geral das Nações Unidas, Ilham Aliyev frisou que o Azerbaijão é um "centro de multiculturalismo, onde todas as religiões e grupos étnicos convivem em harmonia". O presidente azeri sublinhou ainda que o conflito deve ser resolvido com base na lei internacional e que o controlo do Azerbaijão sobre os seus territórios deve ser restaurado.

O DN contactou por email o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Baku. Hikmat Hajiyev, o porta-voz, respondeu às questões colocadas (ver entrevista ao lado), defendendo que qualquer passo na direção da resolução do conflito terá que começar com o abandono das forças arménias dos territórios ocupados. Em 1993, entre abril e novembro, o Conselho de Segurança das Nações Unidas emitiu quatro resoluções apelando a essa retirada. Hajiyev garante ainda que a Arménia levou a cabo uma "limpeza étnica" nesses territórios e sublinha que até mesmo nos manuais escolares arménios está também presente um discurso de ódio contra o Azerbaijão.

O DN chegou ainda a fazer uma entrevista a uma investigadora azeri, especialista em relações internacionais, que se ofereceu para encontrar outros membros da sociedade civil que estivessem disponíveis para falar. Mais tarde, explicou que ninguém tinha aceitado e pediu - justificando-se com a "sensibilidade do tema e com os desafios ao nível da segurança" no país - que a entrevista não fosse usada na presente reportagem.

Amigos, amigos países à parte

Anna Sarafian (nome fictício) tem 24 anos, nasceu em 1993, é natural de Stepanakert e a mãe engravidou durante o conflito nos anos 90. Faz parte de uma nova geração de arménios que nasceram depois, durante ou pouco antes da guerra. Após a licenciatura na Arménia, completou um mestrado em Direito Internacional na Universidade de Birmingham, no Reino Unido, e hoje trabalha para o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Nagorno-Karabakh. Garante que nunca sentiu qualquer tipo de ódio para com os azeris. "São pessoas normais. Tal como nós têm as suas famílias. Tal como nós os pais têm os filhos no exército a servir na linha da frente. Também eles sentem o mesmo medo e a mesma dor. Não, nunca os odiei", garante, sublinhando que o problema reside do discurso agressivo do governo do Azerbaijão. Nos tempos em que estudou no Reino Unido, estabeleceu contactos com colegas azeris, mas as ligações acabaram por se perder: "Não querem manter contacto no Facebook, porque seria perigoso para eles ter amigos arménios".

Ani Minasyan (nome fictício) tem 28 anos, é licenciada em História pela Universidade Estatal de Ierevan e especializou-se na política e na sociedade do Azerbaijão. Fez questão de aprender a língua do país vizinho para poder ter acesso a fontes de informação "livres de propaganda". Há alguns anos participou em vários "encontros de construção de paz". Reuniões realizadas em terreno neutro, normalmente na Geórgia. Organizados por emigrantes arménios e azeris que vivem nos Estados Unidos, são encontros que têm como objetivo que os jovens possam conhecer quem está do outro lado e estabelecer um diálogo. Ani recorda-se que numa dessas reuniões, quando estava a apresentar a sua visão do conflito, uma rapariga do Azerbaijão saiu da sala aos gritos. "Dizia que eu estava a mentir. Não estava preparada para ouvir o meu lado da história. Depois consegui entender o porquê da reação que teve. Percebi que ela estava debaixo de propaganda, que nunca tinha saído do país, que nunca conhecera ninguém da Arménia. Foi algo muito novo para ela. Estava apenas à espera de me ouvir pedir desculpa e não de ouvir o meu lado", explica.

Desses encontros nasceram algumas amizades. Um dos amigos de Ani, que conheceu em 2012 numa reunião na Geórgia, viria a ser preso em 2013 pelas autoridades azeris e condenado a uma pena de oito anos. Estava envolvido no N!DA, um movimento cívico que luta pelos direitos humanos e pelos valores democráticos. Foi libertado no ano passado. Ani prefere não dizer o seu nome: "Não quero criar-lhe mais problemas". A académica está convencida de que nem os arménios nem os azeris querem a guerra. Mas não tem ilusões a curto-prazo: "O conflito é útil para Aliyev, o presidente Azeri. É algo que o ajuda a manter o poder".

A paz congelada

Os confrontos do ano passado mostraram que o regresso de uma guerra em larga escala é um perigo que não está afastado. "Mesmo antes de abril de 2016, não se tratava de um conflito congelado, era uma situação tremida", explica Ashot Ghulyan, presidente do parlamento do Nagorno-Karabakh. "Há muito tempo que o Azerbaijão estava a brincar com o regime do cessar-fogo, para ver qual seria a reação da comunidade internacional. Quando perceberam que não havia uma resposta clara e assertiva decidiram atacar. Voltaram a mostrar que o objetivo de acabar com a população Arménia ainda está na sua agenda. Isto afeta seriamente o processo negocial", acrescenta. Para Ghulyan, será muito difícil restabelecer relações nas próximas décadas: "Desde o jardim de infância que as crianças azeris aprendem que os arménios são o inimigo".

O processo de paz parece estar num beco sem saída. O governo de Baku continua a afirmar que jamais irá abdicar do Nagorno-Karabakh e as Nações Unidas não reconhecem a independência da região. Criado em 1992 pela Organização para a Cooperação e Segurança na Europa, o grupo de Minsk, liderado em conjunto pela França, Rússia e Estados Unidos, tem como objetivo encontrar uma plataforma de entendimento. Apesar dos esforços, têm sido escassos os avanços nesse sentido. Um dos problemas é a ausência de Stepanakert da mesa das negociações. Baku não aceita dialogar com o Nagorno-Karabakh enquanto a Arménia não retirar as tropas dos territórios ocupados.

"O envolvimento do Nagorno-Karabakh nas negociações é indispensável para a resolução do conflito. Sem a nossa participação é impossível", resume Bako Sahakyan, presidente do país. "Se o Azerbaijão e o grupo de Minsk querem encontrar uma solução têm que tornar o Nagorno Karabakh parte do processo negocial", sublinha, no mesmo sentido, Ashot Ghulyan. Nem Sahakyan nem qualquer outro político entrevistado para esta reportagem aceitou revelar que percentagem do orçamento do Estado do Nagorno-Karabakh é investido na Defesa.

E baterá mais forte o desejo pela independência ou pela reunificação com a Arménia? Qualquer que seja o interlocutor, em Stepanakert ou em Ierevan, a resposta é quase sempre a mesma: primeiro o reconhecimento da independência e depois a reunificação. Avançar imediatamente para a união dos dois territórios seria um passo maior do que a perna e mais difícil de entender para a comunidade internacional. "A reunificação é algo natural. Mas se o mundo não está preparado para nos ver como parte da Arménia que pelo menos esteja preparado para nos aceitar como um território independente", enfatiza Ghulyan.

O presidente Bako Sahakyan, não deixando de referir que o Nagorno-Karabakh tem muitos amigos na Europa, chama a atenção para aquilo que considera um paradoxo: "Os países europeus têm relações muito próximas com o Azerbaijão - que é um regime ditatorial que contraria princípios básicos internacionais - apenas porque é reconhecido. Ao mesmo tempo, rejeitam ter relações institucionais com o Nagorno-Karabakh - que é um estado completamente democrático - só porque não é reconhecido internacionalmente. Isto é ridículo".

De acordo com Stepanakert, a justificação para o imobilismo ocidental está na "diplomacia agressiva" de Baku. "Os políticos europeus não querem perder dinheiro. Algumas notícias recentes mostram como o Azerbaijão trabalha ao nível da corrupção", exemplifica Ghulyan. Estas declarações foram feitas poucos dias depois de o jornal germânico Süddeutsche Zeitung ter revelado que um aliado da chanceler alemã Angela Merkel teria recebido dinheiro para fazer lobbying pelo Azerbaijão.

"No Ocidente as pessoas não estão bem informadas sobre o Nagorno-Karabakh. Os espaços são preenchidos pela propaganda azeri, porque eles têm o dinheiro e fazem as pressões a uma escala muito maior", acrescenta Armine Alexanyan, vice-ministra dos Negócios Estrangeiros do governo de Stepanakert.

Derrubar fronteiras

Para a Arménia, o Azerbaijão não é o único vizinho com quem as relações são problemáticas. Existe também a Turquia. Apesar de haver voos entre Ierevan e Ancara e Istambul, as fronteiras por terra estão trancadas. A afastar as duas nações continua o fantasma da limpeza étnica da população arménia às mãos dos otomanos em 1915, durante a Primeira Guerra. A Turquia não reconhece o genocídio, que para a Arménia é um facto histórico inegável. Tudo se passou há mais de um século, mas as feridas continuam abertas, impedindo uma boa relação entre os dois países.

David e Davit são arménios. Elif e Asya são turcas. Os quatro têm entre 16 e os 18 anos e é fácil perceber que entre eles existe uma genuína amizade e cumplicidade. Estudam juntos em Dilijan, no norte da Arménia, num dos 17 colégios da rede United World Colleges existentes no mundo. Neste caso são 213 alunos, oriundos de 82 países diferentes, que vivem e aprendem em conjunto. "No ano passado, os estudantes arménios e turcos organizaram uma celebração para homenagear todos aqueles que morreram. Para mim foi uma oportunidade de perceber e de sentir empatia com a dor dos arménios", narra Elif, sentada ao lado de Davit. Na Turquia, estudou numa escola privada, mas Asya frequentou o ensino público. As duas têm experiências contrastantes. A primeira conta que o tema foi abordado nas aulas, que estudaram e falaram sobre o assunto. Mas, para a segunda, a realidade foi outra. "Uma professora universitária foi à nossa escola e fez uma apresentação sobre o genocídio arménio dizendo que nunca aconteceu. Nas escolas públicas o currículo é baseado na negação do genocídio", relata Asya.

Elif explica que na Turquia é possível encontrar três visões diferentes sobre o assunto: há os negacionistas, há aqueles que admitem que houve massacres mas que não aceitam falar em genocídio e há ainda os outros que reconhecem o genocídio. "Não há dúvida de que somos dois povos próximos e dois vizinhos distantes", resume Asya. "Existe uma fronteira mental porque não há ligações entre os dois povos", acrescenta Elif. As duas contam que viver na Arménia lhes mostrou as semelhanças culturais entre as gentes. "Era bom que também fosse possível conviver com estudantes azeris. Tenho a certeza de que eles defendem a paz", diz David.

Talvez a nova geração possa ser capaz de fazer pontes para ultrapassar os muros que política foi erguendo ao longo de décadas. Talvez as trincheiras, escavadas na linha de contacto entre o Nagorno-Karabakh e o Azerbaijão, possam um dia não ser mais do que fósseis de um conflito passado. Talvez Lida e Zora possam um dia voltar a Talish.

O jornalista viajou a convite da European Friends of Armenia, uma ONG em Bruxelas

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