Confinados, desconfinados: uma radical experiência social
Quando foi adaptada a um programa de televisão, a expressão Big Brother, que vinha da distopia ficcional 1984, de George Orwell, talvez nem nos tenhamos apercebido do que estava de facto a acontecer: uma experiência social que era vista, no livro, como infernal, tinha sido banalizada. Mesmo pelos que acompanharam o programa em tom cínico.
O fenómeno da tv realidade trouxe a ideia de que os seres humanos também podiam ser ratinhos de laboratório. O que a trauliteirice dos concorrentes e a sem vergonha do que gravitava à sua volta - dos que salivavam pelas audiências e pelo próximo ato escandaloso dos "concorrentes", fosse de violência fosse de sexo - o que todo esse ambiente, ao ser transmitido pela tv, em horário nobre, acabou por fazer foi a banalização da ideia de que seres humanos podiam fazer experiências sociais, sem que isso parecesse uma coisa tremendamente negativa e manipuladora.
E seguiram-se muitas, noutros tantos programas de tv. Mas nenhuma em tão grande escala como a que estamos agora todos a viver. Eis-nos à experiência. Não há dia em que não nos levantemos das nossas camas, e, seja para continuarmos confinados ou para sair à rua, não sintamos que estamos numa irrealidade tão real como deve ser um estúdio de um reality show. É como se tivéssemos uma câmara a olhar para nós, numa experiência social em tempo real - passos seguidos, controlados.
Esta é uma experiência social mas também epidemiológica, virológica e económica. Talvez não pareça - sobretudo a avaliar pela quantidade de especialistas que nos aparecem à frente - mas rigorosamente ninguém sabe se o que estamos a fazer é o mais correto. Vamos dando passos de acordo com o caminho. E mudando o rumo de caminho de acordo com os passos. Como dizia o diretor do Centro para a Segurança na Saúde da americana Universidade John Hopkins ao The New York Times, Tom Inglesby: "Estamos no meio de um período de tentativa e erro, a tentar encontrar a melhor solução numa difícil situação."
E as questões que se colocam cruzam ética, saúde e economia. Questões que nem sequer quereríamos colocar, daquelas que antes eram exercícios hipotéticos de filosofia e agora são reais - como dizia aquele especialista ao jornal americano. Quantas vidas podemos arriscar para poupar mil pessoas de irem para o desemprego? Para devolver as crianças ao seu percurso escolar? Para reganhar um sentido de normalidade?
A resposta honesta é: não sabemos. Cobaias humanas, somos. "Sem podermos esperar indefinidamente pela ciência para nos dar respostas sobre o que faz com que as infeções expludam numas circunstâncias e não noutras, os governos estão a pôr em prática medidas construídas numa crescente mas imperfeita sabedoria sobre este vírus", dizia o The New York Times.
Estamos a fazer o caminho de figas nos dedos, esperando que corra tudo bem. O mundo a aprender com o resto do mundo nesta inusitada crise global. Um exemplo: percebemos que, se o vírus se transmite pela proximidade, é eficaz que nos afastemos uns dos outros. E o confinamento surtiu efeito - na saúde. Poupámos hospitais e mortes. Mas, e agora? Como fazer com que as pessoas se "desconfinem" - este tão expressivo neologismo dos últimos dias, em que quase se sente essa força centrípeta que é preciso exercer sobre as pessoas para que se decidam a sair de casa?
Com as máscaras foi o mesmo. A ideia de que não se deviam usar veio da lógica de que poderia haver, por um lado açambarcamento, por outro, má utilização. Mas depois de outras experiências, de outros países, asiáticos e de leste - como a República Checa, por exemplo - acabou por perceber-se que as máscaras podem fazer mais bem que mal. E que, sobretudo, defendem os outros das nossas gotículas, se contaminadas.
Saímos à rua, agora todos de máscara posta, deixamos os sapatos à entrada da porta, não nos aproximamos mais de dois metros de quem passa... Corremos no temor de que alguém espirre, à nossa frente. Julgamos quem por nós passa tendo em linha de conta os comportamentos social e higienicamente corretos - que se transformaram, também, numa linha de divisão política.
Nos EUA, onde as opiniões correm exacerbadas, as opiniões passaram a dividir-se entre os que acham que o confinamento foi exagerado, os mesmos que consideram que usar uma máscara é sinal de "ser de esquerda radical" e que acham que a economia devia reabrir o mais depressa possível. Os outros são os que acham que todas as liberdades individuais podem ser relativas face ao bem comum, e que acham que os que acham que a economia devia reabrir são uns miseráveis capitalistas sem coração.
Entre estes achismos se desenham as linhas divisórias de um país já quase a rebentar, de tanto puxar, por essa divisão. E é uma verdadeira inutilidade - discutir sobre coisas em que não há certezas. Essa é a única certeza que podemos ter.