Condecoração em dia de entrega do maior prémio de visão
O dia de festa estava marcado para a entrega de um milhão de euros às organizações que se destacaram no combate à cegueira e às doenças oculares em países pobres. Mas, Marcelo Rebelo de Sousa acabou por trocar as voltas à festa e pôs os holofotes também sobre a presidente da Fundação Champalimaud - entidade que entrega o maior prémio do mundo na área da visão -, Leonor Beleza, ao condecorá-la com a Grã Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.
O presidente da República explicou a condecoração com o empenho da também sua amiga de infância "para colocar de pé" a Fundação Champalimaud. Leonor Beleza ficou não só surpreendida como emocionada com a distinção. Já no ano passado, o presidente tinha condecorado, a título póstumo, António Champalimaud.
Antes de Marcelo Rebelo de Sousa encerrar a cerimónia anual da entrega do Prémio António Champalimaud de Visão 2017, ouviu-se pela primeira vez um agradecimento em português. Izidine Hassane, diretor da Sightsavers para Moçambique, agradeceu o prémio em nome da organização britânica. Ao DN, antes da cerimónia falou dos desafios que a instituição ainda tem para cumprir no seu país: "Um estudo de há sete anos indicava-nos que 7% da população acima dos 50 anos era cega devido a cataratas. Ou seja, 33 mil pessoas cegas na província de Nampula. Ora, se no ano passado fizemos pouco mais de 2500 cirurgias às cataratas, mesmo juntando os dez anos que lá estamos não chega, no melhor cenário, a 15 mil cirurgias. O que significa que continuamos com uma lista de espera de 18 mil, sem contar com novos casos." Admitindo que "houve melhorias", o responsável defende que é preciso fazer mais.
A outra organização premiada foi a CBM, representada na cerimónia pelo oftalmologista Babar Qureshi. A metade do prémio que foi entregue à instituição cristã vai ser usada para "chegar a mais pessoas". O trabalho da CBM, fundada pelo pastor alemão Ernst Christoffel, concentra-se na prevenção da cegueira e na promoção da qualidade de vida de deficientes visuais nos países mais pobres.
Leonor Beleza sublinhou o trabalho das duas "organizações pioneiras" que "em vários cantos do mundo dão luz aos olhos de milhões de pessoas". O trabalho de prevenção e denúncia da cegueira evitável, motivaram também o elogio da presidente da Fundação Champalimaud. "São instituições que apoiam e inspiram soluções", acrescentou no seu discurso. A Sightsavers e a CBM trabalham em países como o Nepal, Moçambique, Uganda, Etiópia ou Bangladesh.
As duas vencedoras, que receberam cada uma 500 mil euros, foram selecionadas por um júri de onde se destacam nomes como o secretário-geral da ONU, António Guterres, o prémio Nobel da Medicina Susumu Tonegawa, o ex-presidente da Comissão Europeia Jacques Delors e o oftalmologista José Cunha-Vaz.
Lançado pela Fundação Champalimaud em 2006, o Prémio António Champalimaud de Visão é considerado o maior do mundo na área. Em anos alternados, reconhece a investigação científica sobre doenças dos olhos e o trabalho de instituições na luta contra a cegueira, sobretudo em países subdesenvolvidos. Este ano, foi a vez de instituições não-governamentais serem galardoadas. Ao todo, a Fundação já distribuiu 11 milhões de euros para distinguir trabalho e investigação na área da visão.
[citacao:Chegamos aos mais pobres dos mais pobres]
O oftalmologista paquistanês (que viveu desde os 4 anos na Nigéria) é conselheiro da CBM Internacional, instituição que trabalha em 59 países. Descreve o prémio como "um grande reconhecimento pelo nosso serviço à humanidade".
Como é que a CBM começou a trabalhar a saúde ocular?
Somos uma organização com mais de cem anos de existência que tem trabalhado sempre em cuidados oculares. Atualmente, juntamos à saúde oftalmológica outras doenças, mas o nosso trabalho principal continuam a ser os cuidados oftalmológicos.
Nos países mais pobres os problemas oculares são significativos?
Existe uma grande prevalência de doenças oculares e de cegueira, que se combina com pobreza. Um dos pontos-chaves que gostaríamos de atingir como organização é dar acesso a estas comunidades marginalizadas. Garantir que elas têm cuidados oculares globais.
Por que estas pessoas são marginalizadas, tanto no acesso à educação como ao trabalho.
Há dois tipos de pessoas que nós apoiamos. Umas são as crianças e é importante que olhemos para a saúde dos seus olhos para que elas possam ter acesso à educação, ter uma boa qualidade de educação superando os seus erros de refração, que a maioria das crianças tem. Outra coisa são as pessoas idosas ou de meia-idade que desenvolvem doenças oculares que causam diminuição visual e que podem precisar de cirurgia, tratamento médico ou de intervenção ótica. Para as pessoas que ficam cegas e que não podem ser ajudadas medicamente, podemos garantir que tenham reabilitação, através de educação e oportunidades de vida. Por isso é que chamamos ao nosso programa integrado porque garantimos prevenção, tratamento e reabilitação.
Quais são os principais problemas oculares nestes países?
Vemos uma enorme quantidade de cataratas, muitos glaucomas, muitos erros de refração e erros refrativos não corrigidos, e muitas doenças tropicais negligenciadas relacionadas com os olhos: tracoma, cegueira dos rios. Estas são as doenças com que trabalhamos e a que tentamos responder.
São curáveis?
Cerca de 80% podem ser evitadas ou tratadas. Por isso, chamamos-lhe causas evitáveis de perda de visão.
Como escolhem os países onde trabalham?
Os critérios são: a necessidade em termos de peso da doença, depois é pobreza - onde o país se encontra em termos de índice de pobreza global -, procuramos perceber que outros serviços estão disponíveis nesse país para as pessoas e se existe já um programa nacional. Pegamos nestes parâmetros e tentamos trabalhar nos mais pobres dos países pobres e nesse país procuramos o distrito mais pobre e aí trabalhamos nas comunidades mais pobres. Não queremos esperar nas nossas clínicas por doentes que venham ter connosco, mas queremos ir ter com os doentes. Queremos ser identificados pelo facto de chegarmos aos não alcançáveis.
[citacao:Só sete distritos de Nampula podem fazer cirurgias]
O diretor para Moçambique da Sightsavers elogia os esforços que têm sido feitos nos últimos 10 anos no país. Ajudou a levar os cuidados à província de Nampula, mas lembra que ainda há muito caminho a percorrer para evitar a cegueira e doenças oculares.
Como é que a Sightsavers chega a Moçambique?
A Sightsavers começa os contactos com o ministério da saúde há 11, 12 anos e iniciamos atividade há 10 anos. Desde então fomos capazes de montar todo um programa em que de forma integrada foi capaz de desenvolver todos os serviços relacionados com a saúde ocular. Desde a criação de condições de funcionamento nos serviços de oftalmologia existentes, fornecendo equipamentos e consumíveis ao pessoal que já estava em serviço, como o desenvolvimento de base num projeto estruturado para fazer face aos problemas de saúde ocular. Com fundos da comissão europeia treinámos, por cinco anos, técnicos de oftalmologia que serviram e servem para aumentar as fileiras de pessoal disponível para cuidar dos pacientes que necessitem de cuidados de saúde ocular.
Em hospitais e centros de saúde públicos?
Sim, integramos o nosso know-how e os nossos recursos dentro daquilo que são os planos estratégicos do ministério da saúde. Quem de facto faz o atendimento ao paciente é o ministério da saúde através das suas unidades, nós como parceiros, conseguimos dotá-los com capacidade para tal. E os pacientes são vistos dentro do sistema nacional de saúde.
A Sightsavers faz a formação?
Nós apoiamos a formação, não a fazemos. Apoiamos com os equipamentos, os orçamentos para a formação de pessoal, os livros didáticos, o kit para funcionamento, que é entregue a cada distrito para onde é destacado um técnico. Porque se não ele chegava lá e não tinha uma caixa de prova, uma lanterna de oftalmologia. Promovemos também a formação de oftalmologistas, neste momento, fora do país, com o objetivo de médio e longo prazo que eles constituam a docência para o curso de oftalmologia já existente no país. Promovemos a melhoria das unidades sanitárias na componente de consultas médicas e de cirurgias de modo a que os distritos com capacidades cirúrgicas tenham as condições para que os funcionários e as equipas de oftalmologia que neste momento ainda estão concentradas nas grandes cidades. Na cidade de Nampula, dos 23 distritos, apenas sete têm capacidade cirúrgica. Por isso, de forma rotativa, eles todos os meses vão fazendo brigadas móveis para atender os pacientes nos distritos.
O problema é a falta de acesso?
São dois elementos combinados: a existência de profissionais suficientes que cubram o país onde eles são necessários, e as distâncias que as pessoas têm de percorrer para as unidades sanitárias, independentemente se estas têm ou não cuidados oftalmológicos. Temos tentado criar um meio termo, que é de forma rotativa e contínua levar a equipa de oftalmologia aos hospitais distritais com capacidade para receber este tipo de pacientes e ao mesmo tempo disponibilizar transportes para trazer os pacientes das comunidades mais recônditas a estes hospitais. Então colocamo-nos no meio. O pessoal que vai é do sistema nacional de saúde e depois os recursos, equipamentos, consumíveis, transportes, para que eles possam disponibilizar serviços para as populações mais carenciadas são da Sightsavers.