Companheira solidária admirável
Dormia numa cela do Aljube com a tranquilidade de sempre quando Zenha o acordou para lhe dizer que, numa janela da Sé de Lisboa, fronteira à cadeia onde estavam os presos políticos, Maria de Jesus (como é tratada em família e pelos amigos) estava a fazer sinais. A atriz acabara de casar com o advogado por procuração e, nesse dia 22 de fevereiro de 1949, já o podia visitar. "Mário e Maria não estavam sozinhos", reconstituirá Alberta Marques Fernandes, pois "o terceiro andar [na visita das duas e meia] estava repleto de gente (...), mas foi ali, (...) sob os olhares de todos, que trocaram as alianças que Maria levara na mala" (As Primeiras-Damas).
Derriços diversos não o aproximaram logo da colega da Faculdade de Letras. "Sabia que era atriz, que trabalhava no Teatro Nacional e que tinha algum prestígio nos meios artísticos e intelectuais. Lembro-me da primeira vez que a vi, achei-a interessante. (...) Sabia também que ela era uma grande declamadora, punha as plateias a fervilhar de entusiasmo e beneficiava, em certos meios, de grande simpatia popular" (Ditadura e Revolução).
Na época, "a poesia panfletária - sobretudo do Novo Cancioneiro - [atraía Maria Barroso] com a sua fúria fustigadora das injustiças e da falta de liberdade que se sofria. Álvaro Feijó, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira e outros ofereciam-[lhe] os versos que [ela] quase gritava, com a força da [sua] indignação", admitia em Olhares... de Maria de Jesus Barroso Soares. A "declamadora do povo" galvanizava auditórios com Prometeu (Joaquim Namorado), Mataram a Tuna (Manuel da Fonseca), Soneto Imperfeito da Caminhada Imperfeita (Sidónio Muralha). E dos palcos, lembrava "um artigo que [José Régio] escreveu e em que se insurgia pelos elogios que [lhe] faziam pela representação de Casa de Bernarda Alba [de García Lorca], esquecendo-se - no dizer dele - da [sua] interpretação de Benilde, que ele considerava ter sido tão boa ou superior à de Adela. [Guardava] da peça de Régio [Benilde ou a Virgem Mãe] uma lembrança inesquecível e das palavras que Jorge de Sena [lhe] dedicou, na Seara Nova, a propósito da representação".
Mais tarde, dirá ao sobrinho cineasta, Mário Barroso, no documentário sobre Soares Memórias do Portugal Futuro, que o marido já "era um animal político" quando o conheceu, "tinha uma força imensa" e era "um pouco o chefe do grupo na Faculdade de Letras." E, após percorrer "os caminhos da angústia e da preocupação" (como escreveu no in memoriam a Abranches Ferrão, que tratava o marido como "o menino buliçoso") no Congresso Pro Pace, em Angola (julho de 2000), assumirá ser "companheira de um homem, que muito [ama], a quem [está] ligada há muitos anos e que é hoje uma figura conhecida e respeitada, dentro e fora do [seu] país".
Também ele ficaria definitivamente rendido àquela "pureza", "seriedade" e "constância". E as contrariedades das décadas seguintes terão reforçado esse "sólido amor" (Ditadura e Revolução). Ela, escreveu Diaz Nosty, "foi a peça-chave da vida de Mário Soares, sustentando o colégio fundado pelo sogro e com cujas receitas fariam frente às necessidades familiares" (Um Combatente pelo Socialismo)". E Mário Soares reconhecia, numa entrevista à Marie Claire, em 1988, que a mulher - falecida em 2015 - era uma "personalidade superior" e uma "companheira solidária admirável".