"Como vítima magoa-me muito que tenham retirado o cartaz"
Eram cinco da manhã desta quarta-feira quando Telma Tavares, designer gráfica de 42 anos, ao meter-se no carro para ir para casa depois de ver colocado, em Algés, o último dos outdoors que desenhara, disse a quem estava com ela: "Se algum cartaz for tirado vai ser este."
Eram três cartazes, como no filme: um na Alameda, em Lisboa, outro em Loures, e o terceiro em Algés/Oeiras. Todos iguais, com o número estimado de vítimas - "mais de 4800" - de abuso sexual no seio da Igreja Católica, tal como consta no relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, e 4815 pontos, a simbolizar cada uma delas.
"O de Algés às 10.50 ainda lá estava, mas às três da tarde já tinha sido removido - soube porque uma amiga passou lá e mandou-me uma foto", conta Telma, que com quatro outras pessoas (uma acabou por abandonar a iniciativa; as outras são Bruno Rodrigues, Gonçalo Cruz e Vânia Mendes) teve a ideia de fazer um crowdfunding, dinamizado na rede social antes conhecida como Twitter, para colocar outdoors a lembrar as vítimas de abuso sexual na Igreja Católica portuguesa durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) que esta semana decorre em Lisboa. Uma espécie de memorial alternativo - o website que criaram tem precisamente o título "o nosso memorial" -, em referência ao anunciado pela Igreja Católica, e que não foi ainda criado.
"A haver algum outdoor que fosse censurado, achei que seria aquele", diz a designer. O pressentimento deve-se ao facto de considerar que em Oeiras a gestão autárquica é "autoritária".
Justamente o principal gestor da autarquia, o presidente da Câmara de Oeiras, Isaltino Morais, foi confrontado pelo DN com a retirada do cartaz pela Polícia Municipal de Oeiras pouco depois de esse facto ter sido confirmado ao jornal por fonte oficial da segurança da JMJ. A sua reação foi: "Não sei de nada".
Alegando que a autarquia tem "descentralização de competências" e que devia ter sido uma decisão do vice-presidente, Francisco Rocha Gonçalves, o autarca acabou no entanto por admitir que ouvira "alguma coisa sobre publicidade ilegal".
Questionado sobre se não tinha opinião sobre a retirada, pelos serviços da câmara a que preside, de um cartaz sobre o número de vítimas de abuso sexual na Igreja Católica num momento em que decorre um evento católico na área, Isaltino furtou-se a responder - "Se for um cartaz ilegal... Tenho opinião mas não vou reagir a uma informação dada por uma jornalista" -, remetendo para o gabinete de imprensa da autarquia.
O dito gabinete solicitou que o DN enviasse perguntas por escrito. Tinham passado três minutos sobre o envio das ditas quando chegou a resposta, numa frase: "No Município de Oeiras toda a publicidade ilegal é retirada, neste e em todos os casos". O email da autarquia continha também a reprodução de um edital assinado pelo vice-presidente e datado de 18 de julho. Neste, lê-se que "os proprietários dos suportes publicitários colocados no território do Concelho de Oeiras que não possuam a necessária licença municipal (...) deverão, no prazo de dez dias úteis a contar da data de publicação do presente edital, proceder à remoção dos referidos equipamentos."
O jornal insistiu no pedido de resposta às perguntas enviadas - quem deu a ordem de retirada do cartaz (e não do suporte, que ficou onde estava); o motivo pelo qual o cartaz foi considerado "publicidade ilegal"; em que sentido considera a Câmara de Oeiras que um cartaz aludindo às vítimas de abuso sexual da Igreja Católica é "publicidade"; e, coincidindo a retirada do cartaz com a JMJ e a visita do papa, se a autarquia não teme que tal seja interpretado como um ato censório. Porém não houve qualquer esclarecimento adicional.
"Os nossos cartazes não são publicidade, a publicidade implica um objetivo comercial. São mensagens políticas", contrapõe Telma Tavares, que pergunta, sarcástica: "A ser publicidade o nosso cartaz, seria a quê?" Frisa também que a estrutura onde foi colocado, e que foi alugada a uma empresa para o efeito, está naquele local há anos. Acresce que, garante, "ninguém falou connosco, nem com o fornecedor. No caso de existir uma tela ilegal, dão cinco dias para retirar. Mas levaram-na sem qualquer contacto prévio. Nem fazemos ideia de onde está a nossa tela."
A designer suspira. "É um ato tão... Se calhar já ninguém estava a falar dos cartazes e agora está tudo justamente indignado. Mas a mim o que me preocupa mais é o impacto que isto está a ter nas vítimas. Temos estado em contacto com algumas, nomeadamente com a associação Coração Silenciado, e o feedback em relação à iniciativa foi muito positivo. Sentiram que era uma manifestação pública de apoio, sentiram força. E perante a censura a um cartaz em que lhes é feita uma homenagem, sentem-se uma vez mais invisibilizados, silenciados."
Filipa Almeida, 43 anos, faz parte da associação. E confirma. "Não percebo. Aquele não era um cartaz que incitasse ao ódio, à violência. Não há nenhuma razão moral para tirar aquele cartaz, e se fosse por razões legais teriam tirado os outros dois. Tirar um cartaz que foi feito por um grupo de pessoas para nos homenagear, para homenagear quem foi abusado em criança, é dizer que continuamos a não valer nada. Como vítima magoa-me muito que tenham retirado o cartaz. É uma falta de respeito, sinto-me desrespeitada por esta decisão que a Câmara de Oeiras tomou."
A decisão da autarquia pode ter igualmente desrespeitado a lei e a Constituição. Os juristas consultados pelo DN corroboram a argumentação de Telma: a publicidade está definida no Código da Publicidade e pressupõe enquadramento numa atividade económica, o que obviamente não é o caso. Já a propaganda política tem um regime diferente, não necessitando, nos termos da lei 97/88, de 17 de agosto, de licenciamento por parte das autarquias.
"Se não conseguem justificar melhor o ato, diria que a qualificação do cartaz como publicidade é duvidosa, e que parece uma desculpa esfarrapada para retirar uma mensagem que acharam inconveniente", diz um dos juristas ouvidos. Outro sublinha que "não resulta da lei nem outra qualquer disposição que só partidos políticos ou movimentos de cidadãos legalmente constituídos podem fazer propaganda (ou seja mensagens de conteúdo político)".
De resto, em 2022 a Comissão Nacional de Eleições (CNE) tinha lembrado, a propósito da retirada, pela Câmara Municipal de Lisboa, de cartazes de partidos e movimentos que estavam no Marquês de Pombal, que as autarquias "não têm competência para regulamentar o exercício da liberdade de propaganda" e que a retirada de cartazes do espaço público tem de ser decretada por ordem do tribunal, podendo assim o gesto da autarquia constituir crime.
"A atividade de propaganda, com ou sem cariz eleitoral, seja qual for o meio utilizado, é livre e pode ser desenvolvida a todo o tempo, fora ou dentro dos períodos eleitorais, em locais públicos, especialmente os do domínio público do Estado e de outros entes públicos", dizia então a CNE em resposta escrita enviada à Lusa, lembrando que a liberdade de expressão está consagrada na Constituição e que o "direito ao não-impedimento" destas ações faz partes das "tarefas fundamentais do Estado".