Como um retrato de Vhils e uma caderneta de cromos encontraram lugar no MNAA

Retratos da autoria de artistas portugueses encontram-se na galeria de exposições do Museu Nacional de Arte Antiga. "Do Tirar polo Natural" abre hoje ao público e fica até 30 de setembro. Há pintura, fotografia, vídeo, arte urbana e até uma caderneta de cromos
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O pedaço de parede com três pares de olhos esculpidos veio do bairro 6 de Maio, na Amadora. Pertencia à casa de um deles, antes de demolição. "Vhils queria trazer para o museu, para o centro, estas pessoas que nunca aparecem", explica Anísio Franco, um dos três curadores da exposição de quase 200 retratos de artistas portugueses ou que trabalharam maioritariamente em Portugal que inaugura hoje, às 18.30, no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa. De propósito, convive com o retrato do século XVII de António de Sousa Macedo (1606-1682), o primeiro jornalista português, fundador do jornal Mercurio Portuguez.

A exposição do Museu Nacional de Arte Antiga tem um nome estranho - Do Tirar polo Natural, título do primeiro tratado sobre retrato em Portugal, da autoria de Francisco de Holanda.(1517-1585). Faz 500 anos do nascimento do artista, 50 desde que o historiador de arte José Augusto França se propôs fazer uma exposição neste museu sobre o assunto.

Considerado persona non grata pelo regime, nunca a levaria a cabo. Ficou um ensaio sobre o retrato, publicado em 1981, que entregou ao museu e que agora será publicado no catálogo da exposição.

"Este é o museu natural para revisitar este tema", assegura o diretor, António Filipe Pimentel, autor do subtítulo da exposição: Inquérito ao retrato português. "Não é um rosário cronológico, mas um território altamente qualificado". Que começa no átrio com uma estátua de D. João III e uma obra de Helena Almeida e termina nos Painéis de S. Vicente, de Nuno Gonçalves, exemplo maior da arte do retrato.

Na primeira das salas está uma cópia da cópia do tratado Do Tirar polo Natural, do século XIX. A história é contada por Anísio Franco: Francisco de Holanda deixa um pintor português copiar o tratado, hoje na Academia de S. Fernando, em Madrid. É a partir dela que Monsenhor Gordo faz o seu exemplar, aquele que foi emprestado ao MNAA. Francisco de Holanda dizia que o retrato era intuitivo. Descobriu-o fixando o contorno de uma sombra, "um retrato de uma pessoa que já não está", como faz a artista Lourdes Castro, cujas obras se podem ver nesta núcleo dedicado à afetividade.

É um longo corredor de rostos, onde se pode ver Carlota Joaquina segurando o medalhão com o rosto de D. João VI e aquela que é considerada "a primeira pintura neoclássica em Portugal": a condessa Linhares retratando o marido, uma obra de Domingos Sequeira. Outra obra do mesmo artista: os viscondes de Santarém retratados durante o período de exílio de uma parte da família. O filho mais velho, a viver com os tios no Brasil, aparece num quadro, o rei está numa estátua.

Nas paredes cita-se Francisco de Holanda. "Comecemos pelos olhos, porque deles tem começo toda a luz, e ele são janelas e portas por onde tudo tem entrada". No seu tratado, quanto teórico quanto prático, fala do nariz das orelhas e até do vestido. Acompanham-nas quadros de José Malhoa e de Júlio Pomar (um retrato do escritor José Cardoso Pires), Adriano de Sousa Lopes, entre outros. Ao fundo, a parede de Vhils, que decidiu que retrataria três gerações do 6 de Maio na obra - uma fundadora do bairro, uma morador mais velho e um jovem ativista. Ao contrário de Holanda, que dizia que nem todos podiam ser retratados, Alexandre Farto trabalhou com anónimos.

Uma caderneta de cromos também é retrato

Há outra sala dedicada aos encontros. Bustos vários, entres o que José Cutileiro fez de José Augusto França, uma tela de cores vibrantes de Nikias Skapinakis no Botequim de Natália Correia, mas também uma pequena fotografia do grupo do Leão (com Columbano Bordalo Pinheiro) e o mais inesperado dos retratos, uma caderneta de cromos do mundial de 1966, com a equipa de Eusébio e companhia. "É o retrato que vem cultura popular", explica Paulo Pires do Vale, o outro curador desta troika de que também faz parte Filipa Oliveira (ausente da visita para a imprensa, na quarta-feira, dia 27).

"Não, não, não. Não é ele"

Na passagem para o núcleo dedicado à identidade, o retrato é sonoro e a obra foi criada de propósito para a exposição. Ouve-se: "Não, não, não. Não é ele". "É à maneira da [artista] Luísa Cunha. Refletiu e depurou a ideia até chegar aqui". A esta voz masculina que, firme, diz: "Não, não, não. Não é ele".

Posta de parte a ideia de fazer um exercício cronológico, Anísio Franco concorda todavia que estes retratos contam a sua história. No núcleo dedicado à identidade, aparecem as pessoas que são retratadas como santos. "Só a partir do século XVI é que começamos a assistir a isso, em pleno Renascimento, quando as pessoas começam a conseguir retratar-se para lá dessa humildade que achavam que deviam ter", considera Anísio Franco.

Ainda por montar na quarta-feira estava o trabalho em torno dos Painéis de São Vicente realizado pelo KWY, coletivo de artistas composto por Lourdes Castro, René Bertholo, António Costa Pinheiro, João Vieira, José Escada e Gonçalo Duarte, o búlgaro Christo e o alemão Jan Voss, que se autorretrataram como personagens da obra de Nuno Gonçalves, "como foram de se colocaram no centro da pintura portuguesa", refere Franco. O original vai estar na exposição.

Os autorretratos de Aurélia de Sousa

De Domingos Sequeira a Pedro Cabrita Reis, do vídeo das mãos de Ângelo Sousa (outra parte do corpo que Francisco de Holanda considera fundamental), ao filme autobiográfico E Agora? Lembras-te, passando pelo Ecce Homo de António Carneiro, há uma sala foi dedicada aos autorretratos.

Aurélia de Sousa destaca-se vestida de Santo António, mas sobretudo no quadro do casaco encarnado. "O melhor autorretrato de Portugal, talvez do mundo", segundo Anísio Franco, lembrando que a artista, que estudou em Paris e depois viveu com a família na Quinta da China, expôs em 1900 na Royal Academy, com Columbano Bordalo Pinheiro e António Carneiro.

Poder: força e fragilidade

A última das abordagens, reservada para a última sala, é a mais consensual: o retrato como forma de poder, como demonstra a coleção de retratos (moeda incluída) em que está representado D. João VI, um monarca que percebeu a importância da sua imagem como bandeira do país. Noutro quadro, de grandes dimensões, está o seu avô, D. José I com a rainha Mariana Vitória, segundo a perspetiva de Vieira Lusitano; e, ao lado, o quadro que representa o casamento dos escravos, de José Conrado Roza.

"D. Maria I tinha um jardim zoológico em Belém e anões vindos de todos as partes do império", explica Anísio Franco sobre as personagens da pintura, entre elas a que ficou conhecida como "Preta Rosa", a favorita da rainha. "Está sempre a pedir vestidos para a Rosa". Paulo Pires do Vale chama a atenção para o detalhe da pintura. "Cada um deles tem uma legenda que explica quem são e a quem pertencem".

Desta vez a exposição termina dentro da sala de conferências, com a exibição do filme 48, um projeto de Susana Sousa Dias, a partir do comentário às fotografias que os detidos pela Pide tiravam quando chegavam à prisão.

A exposição, patente até 30 de setembro, termina com a obra Destruição de Fernando Calhau, o retrato que desaparece, pois, como defendia Francisco de Holanda, "o melhor retrato é sempre o que fica inacabado".

Do Tirar Polo Natural
Inquérito ao Retrato Português
Até 30 de setembro de 2018
Museu Nacional de Arte Antiga
Rua das Janelas Verdes, Lisboa
Encerra às segundas-feiras
Das 10.00 às 18.00
Bilhete para a exposição: 6 euros; gratuito para crianças até aos 12 anos; 3 euros para estudantes e maiores de 65 anos.
Exposição + museu: 10 euros.

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