Humanos do futuro: e se o seu médico lhe oferecer um fígado impresso em 3D?

Com o recurso a ferramentas como inteligência artificial e edição genética, é expectável que vivam mais anos e que exista uma melhor capacidade de detetar e tratar algumas doenças. Mas surgirão outras. Três investigadoras discutiram o tema nesta quarta-feira na Universidade de Aveiro.
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Cenário 1: Há alguns meses que Alice se sente confusa, com perdas de memória. Resolve ir ao médico, faz exames e, no dia seguinte, recebe o diagnóstico, feito com o recurso à inteligência artificial: sofre de Alzheimer. Cenário 2: Maria apresenta uma mutação genética que aumenta em mais de 50% a probabilidade de sofrer de cancro da mama. Perante esta previsão, os médicos recorrem à edição genética para corrigir o seu ADN, livrando-a de vir a sofrer da doença. Cenário 3: António precisa de um fígado novo. Através de impressão 3D, os cientistas conseguem obter um órgão que vai substituir o antigo.

Estas são situações hipotéticas que podem vir a tornar-se realidade no futuro, de acordo com as previsões feitas por três investigadoras portuguesas, esta quarta-feira, na conferência "Humanos do Futuro", uma iniciativa da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), que decorreu na Universidade de Aveiro (UA), com moderação do físico Carlos Fiolhais.

Comecemos pelo uso da inteligência artificial no diagnóstico de doenças neurodegenerativas. "Atualmente, o médico [radiologista] tem de olhar para as imagens cerebrais do paciente com os seus olhos e comparar o que está a ver com as imagens do que a doença deve parecer", disse Diana Prata, cientista e cofundadora da NeuroPsyAI, uma startup que se encontra a desenvolver um projeto na área, com especial enfoque nas doenças de Alzheimer e Parkinson.

Como algumas alterações na fase inicial de doenças como a de Alzheimer passam despercebidas ao olho clínico,podem "passar dois anos até se chegar a um diagnóstico robusto". Com a ajuda da inteligência artificial, que oferece um diagnóstico em 24 horas, é possível fornecer aos radiologistas relatórios clínicos da análise ao cérebro dos doentes para que cheguem a conclusões rápidas e precisas. Isto consegue-se através de algoritmos treinados para identificar um padrão que permite distinguir, por exemplo, a doença de Alzheimer do défice cognitivo ligeiro.

É nesta área que trabalha a empresa cofundada pela investigadora portuguesa, que em 2017 ganhou um terceiro prémio das Ações Marie Curie como cientista mais promissora em "Inovação e Empreendedorismo". "Queremos certificar e depois comercializar uma ferramenta que estamos a criar e que está a dar bons resultados", disse ao DN, à margem do evento. A trabalhar com imagens cerebrais enviadas por alguns hospitais, a empresa tem conseguido confirmar corretamente 100% dos casos suspeitos de Alzheimer que lhe chegam. Já quando o objetivo é distinguir entre esta doença neurodegenerativa e outras, a precisão ronda os 90%." Aquilo que os clínicos conseguem oferecer neste momento é entre 60% e 70%", sublinha.

Isto é, segundo a cientista, o futuro próximo. "Num futuro longínquo, a inteligência artificial será o primeiro ponto de contacto e estará presente no diagnóstico, no prognóstico e na escolha do melhor tratamento", explicou. Poderá, eventualmente, vir a substituir o radiologista e a alterar as funções dos médicos. "O neurologista e o psiquiatra estarão lá mais a assistir, dedicados à investigação, a melhorar os algoritmos", esclareceu.

Atualmente, a inteligência artificial já está a dar contributos na área da imagiologia, neurologia, psiquiatria, oncologia, entre outras. Nas doenças neurodegenerativas, Diana Prata destacou como principais vantagens o diagnóstico atempado, os prognósticos mais precisos e uma maior qualidade de vida dos pacientes, bem como uma redução dos custos para um quinto. Mas "não se irá perder a humanidade", questionou alguém do público. "Há humanidade nos modelos de inteligência artificial", respondeu a cientista.

Os humanos do futuro vão viver mais

Sílvia Curado, professora e diretora de investigação na New York University (NYU) School of Medicine, participou na sessão para falar "da paixão pela genética, que leva a uma medicina mais personalizada". Esta é, no seu entender, a medicina do futuro. Neste momento, os cientistas procuram "aprender mais sobre o envelhecimento, para tentar reverter ou desacelerar esse processo e também estudar outros organismos para perceber quais as razões pelas quais alguns vivem apenas uns dias e outros vivem anos e anos".

"As tecnologias na área da genética estão a evoluir tão rapidamente que é difícil prever o que vai acontecer, com que velocidade vamos ter uma longevidade cada vez maior. Mas não tenho dúvidas de que vamos viver cada vez mais tempo", disse ao DN a autora do livro Engenharia Genética - O Futuro já Começou.

Há 20 anos, a leitura do genoma demorava 13 anos e custava três mil milhões de dólares. "Hoje, custa 700 dólares e faz-se em 24 horas. E, no futuro, será possível fazê-lo por cem dólares", adiantou.

Uma das tecnologias mais recentes é a edição genética - chamada CRISPR - "que permite corrigir o ADN". Ou seja, se é detetada uma mutação relacionada com uma determinada doença, é possível corrigi-la, modificando o ADN. "Vamos poder apagar, corrigir, modificar o nosso genoma."

Nesta área, já foram feitas experiências com animais, nomeadamente com cães, mas ainda não existem ensaios clínicos. Apenas é feita edição genética em embriões humanos para fins de investigação no Reino Unido. "Há uma grande resistência por parte dos próprios cientistas relativamente à edição genética em embriões humanos por não sabermos tudo sobre possíveis efeitos secundários que esse tipo de tecnologias pode ter", ressalvou e cientista.

Por outro lado, levantam-se muitas questões, nomeadamente do ponto de vista ético: "Temos o direito de modificar o ADN de um ser que ainda não nasceu? Mas será que não temos também a responsabilidade de evitar que um embrião venha a desenvolver determinada doença? E onde traçamos a linha entre a prevenção e a cura da doença e a otimização de determinadas características, como a altura?"

Outra das potencialidades nesta área é a terapia da substituição celular, que permite, por exemplo, a partir de células da pele, voltar a ter células estaminais (indiferenciadas), que se podem transformar em qualquer tipo de célula. Isto abre grandes possibilidades no tratamento de uma série de doenças.

Neste campo, destaca a investigadora, o caminho vai no sentido da impressão 3D para substituição de órgãos.

Com as novas tecnologias na área da genética, Sílvia Curado antevê que "vamos poder curar determinadas doenças e ter um papel cada vez mais proativo para evitar o seu desenvolvimento. Mas, adverte, vão surgir outras. "A doença é o nosso inimigo número um."

"Não é fácil fazer investigação em Portugal"

Além de Diana Prata e Sílvia Curado, a conferência contou com a intervenção de Joana Magalhães, investigadora de pós-doutoramento no Instituto de Investigação Biomédica da Corunha (INIBIC), que usa a medicina regenerativa no tratamento de doenças reumáticas.

As três fazem parte da GPS - Global Portuguese Scientists, uma plataforma que integra quase quatro mil cientistas portugueses, dos quais 55% com percurso internacional.

Diana Prata, que esteve 12 anos no King's College de Londres, é a única das intervenientes que atualmente se encontra a trabalhar em Portugal. "Aprendi imenso lá fora. Tive uma curva de aprendizagem muito grande ao longo de 12 anos, mas essa curva deixou de ser tão inclinada. Estava a aprender menos. E comecei a ficar com mais vontade de aplicar o que aprendi", explicou. Por outro lado, queria juntar-se a portugueses, "um sentimento tribal, de comunidade".

Além do trabalho na startup NeuroPsyAI, Diana é líder do grupo de Neurociência Biomédica do Instituto de Biofísica e Engenharia Biomédica da Universidade de Lisboa como investigadora da Fundação para a Ciência e Tecnologia.

"Não é fácil fazer investigação em Portugal. Há uma cultura académica, de universidade pouco inovadora, conservadora e muito territorial, mas, enquanto conseguir compensar isso, estarei cá com entusiasmo. É desafiante", concluiu.

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