Como se forma um cineasta (com ou sem a América)
António-Pedro Vasconcelos tem 77 anos, Sara Eustáquio tem 17. Na sala de sua casa, em Lisboa, ele pergunta se sabemos como o cego Homero contava as suas histórias sempre acompanhado por quem lhe desse um toque quando a atenção das pessoas começasse a desaparecer. Então ele lançava mais uma peripécia, de Ulisses ou de Aquiles. E agarrava-as de novo. Dias antes, na Cinemateca, Sara contava que, no curso de verão que fez na New York Film Academy (NYFA), percebeu que "eles querem é contar a história: ou se conta ou não se conta. Agora, até mesmo quando estou a editar, penso: 'Isto não vai acrescentar nada.' Tiro logo. Antes pensava: 'É bonito...'"
"Como é que começa o meu interesse por cinema?" António-Pedro vivia em Coimbra e passava férias na Figueira da Foz. Aí via sobretudo as comédias portuguesas com António Silva ou Vasco Santana. É na faculdade, já em Lisboa, onde estudou Direito durante três anos (e fez apenas uma cadeira), que o cinema aparece com força na sua vida: era lá que passava os dias. "Acho que me apaixonei pelo cinema através dos atores, dos personagens. No cinema americano os atores eram personas. O James Dean e o James Stewart faziam sempre o mesmo tipo de papel. Personagens muito genuínos, frágeis, mas que não cediam. E as mulheres que me atraíam, da Brigitte Bardot à Sophia Loren, à Ava Gardner. Só depois é que comecei a perceber que havia um autor por trás", conta. Percebeu que queria contar histórias.
Apareceu então Paris, para onde aquele que viria a ser o realizador de Perdido por cem... (1973) partiu aos 21 anos. "Foi o período mais extraordinário da minha vida. Ia para a cinemateca ver filmes: vi mais de mil por ano, durante dois anos." À noite era rececionista (já tinha mulher e um filho, e a bolsa da Gulbenkian não chegava), e "lia desalmadamente" noite dentro. Foi estudar Filmografia na Sorbonne, mas, admite, o curso era "um estratagema" para poder fazer o que fez. Depois de voltar, vemo-lo sentado com João César Monteiro, Alberto Seixas Santos, Carlos Saboga, Paulo Rocha e Fernando Lopes a ver e discutir cinema "dia e noite".
Falamos sobre o que o formou como cineasta. Vasconcelos refere os seus mestres, Frank Capra ou Elia Kazan, e, na literatura, de Charles Dickens ou Lev Tolstói. "É como dizia o Truffaut. "Quando tenho um problema, pergunto assim: como é que o Hitchcock resolvia isto?""
Ainda criança, Sara resolvia puzzles. Depois começou a montar "trailers para histórias que lia. Ia buscar imagens à internet e gifs animados, montava tudo e fazia ali uma história". Aos 16 - no ano passado - realizou a curta 4242. Fê-lo sozinha, usando estratagemas como filmar sentada no porta-bagagens do carro em andamento para fazer um travelling. Montou ela mesma o filme no programa Final Cut. "É intuitivo", responde.
4242 foi premiado em vários festivais, de Israel aos Estados Unidos, país para onde foi no verão durante três semanas, para a prestigiada NYFA. A terminar o 12.º ano, Sara, de Torres Vedras, voltará aos EUA no verão. Vai fazer a licenciatura no Art Center College of Design, na Califórnia. O pai, Victor, conta que a universidade tem acordos com a Warner Bros e com a Walt Disney. E refere um nome ligado à escola: Michael Bay, realizador de Pearl Harbor ou Armageddon.
"Lembro-me que quando era pequenina já começava a ver filmes do Tarantino. Os meus pais às vezes ficavam admirados, porque eu começava a rir-me nas cenas mais violentas. Há três, quatro anos comecei a ver os clássicos", diz. As suas referências vêm quase todas dos Estados Unidos. Se lhe perguntamos pelos filmes de referência, fala de Fight Club (1999), de David Fincher ou de Death Proof (2007) de Tarantino. Ligação ao cinema português? "Tenho umas noções. Não gosto muito." Herdeira? "Nem pensar", responde, tímida.
Descobrir o cinema fazendo-o
Leonor Teles tem 24 anos. O nome ecoou pelo país no ano passado quando ela venceu o Urso de Ouro para Melhor Curta-metragem no Festival de Berlim com Balada de um Batráquio. Estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema, o Conservatório. Recentemente, trabalhou com João Salaviza (outro vencedor do mesmo Urso, quase dez anos mais velho) em Altas Cidades de Ossadas.
A família sempre viu "muitos filmes" e levava-a, em Vila Franca de Xira, onde cresceu. "Mas não acho que isso tenha sido fundamental na minha formação. Era uma coisa muito descomprometida. O cinema só começou a ser crucial na minha vida quando eu entrei para o curso." Em pequena, queria ir para a Força Aérea. Mas o que a leva ao curso, explica, é a fotografia. Como curso, achou que poderia ser muito "restrita". Escolheu a imagem em movimento.
"Para mim, o cinema, em termos de descoberta, nem foi o ver, foi o querer fazer. Porque o cinema sempre existiu na minha vida, mas querer fazer foi uma coisa que eu descobri quando estava no Conservatório a fazer filmes com os meus colegas."Outra coisa que o Conservatório e os colegas lhe deram, conta, foram as idas à Cinemateca, e a "troca de informação, um bocado tráfico de nomes , de autores e de filmes, sobretudo".
Os filmes de gangsters aos 12 anos
O miúdo Marco Martins descobriu que se podia "fazer uma vida a fazer filmes" e achou "incrível". Tinha "12 ou 13 anos" e os pais deixavam-no usar a câmara de filmar à vontade. Não era registar a família que queria, mas filmar histórias, "cópias de outros filmes, filmes de gangsters", protagonizados pelos amigos. O realizador de Alice (2005), nascido em 1972, tornou-se espectador muito cedo. Todas as semanas os pais o levavam ao cinema. Via Eric Rohmer ou Sergio Leone. Muitas vezes era aborrecido, admite. Depois, vieram os clubes de vídeo e as "pilhas de filme" que escolhia para os fins de semana: "Num dia podíamos estar a ver um filme do Carpenter, como do Scorsese."
Parte de uma geração que O Sangue, de Pedro Costa (cerca de 15 anos mais velho), marcou em 1989, Marco estudou no Conservatório. Depois, trabalhou nas equipas de rodagem de Wim Wenders ou Manoel de Oliveira.
Fala da sua passagem pelos Estados Unidos, onde estudou na New York University e em Rockport, no Maine. Conta que um dia assistiu em Nova Iorque a uma aula de Arthur Miller, "já muito velhinho". Ao seu lado estava o realizador de Tartarugas Ninja III. "Não estava a prestar atenção, o seu único intuito era, no fim, chegar a ele e entregar o guião ou o cartão." O fenómeno era, aliás, comum em aulas deste género: "Um enxame para entregar cartões ou guiões. Era uma forma estranha de chegar, até conseguires fazer o teu filme."
Nessa altura, começou a aperceber-se "que para fazer filmes não era preciso estar na América". "Esta ideia de que podia fazer perfeitamente o meu cinema cá, que se calhar tinha mais a ver com o universo português. É engraçado, porque também acho que tem que ver com uma certa geração que achava que os filmes vinham da América, isso mudou muito. Quando eu começo a fazer cinema começam a aparecer os novos cineastas do mundo inteiro: Kusturica, Wong Kar Wai, Almodóvar... Isso foi muito renovador: esta ideia de que o cinema podia vir de qualquer sítio do mundo e que quanto mais local fosse a história mais universal era a audiência à qual chegavas."
Começar no Bambi
"Chaplin, Buston Keaton, a partir de certa altura Jean Renoir ou Hitchcock, Sam Peckinpah, John Ford, Howard Hawks, Rossellini, Fellini, Antonioni, Visconti, cinema francês, alemão..." Manuel Mozos formou o olhar no cinema. Bambi foi o seu primeiro filme. "Impressionou-me, apesar de ser uma memória vaga. As primeiras projeções vistas numa sala escura com mais gente, só essa espécie de ritual marcava-me", conta. Marcaram-no ainda Mary Poppins ou Lawrence da Arábia. Depois vieram as leituras, autores como André Bazin, revistas como os Cahiers du Cinéma ou até a portuguesa Plateia. Depois de uma passagem pela faculdade, chega ao Conservatório aos 22 anos. Hoje tem 57. Na sua turma estavam Edgar Pêra, o músico Rui Reininho ou o ator Miguel Guilherme.
Foi aluno de António Reis, Seixas Santos, Paulo Rocha, Jorge Silva Melo, ou até do poeta João Miguel Fernandes Jorge. De Reis, com quem trabalharia em Rosa de Areia, recorda o tempo depois das aulas, no jardim do Príncipe Real, em grupo. "A falar das árvores, ou ele levava uns livros, banda desenhada como o Krazy Kat..."
Diz que antes do Conservatório trabalhou nos arquivos da Cáritas, e quando voltou de Paris, depois da escola, na Biblioteca da Ajuda. Coincidência ou não, o cineasta, dedicaria parte da sua carreira a um trabalho de arquivo. Autor de Censura: Alguns Cortes, Mozos, que surge com Um Passo, Outro Passo e Depois... em 1989, trabalha hoje no Centro de Conservação (ANIM).