Como os milhões da Malásia serviram para iates e festas com DiCaprio e Britney Spears

O ex-primeiro-ministro malaio terá desviado milhões de um fundo que ele próprio criou para ajudar o país. O dinheiro, diz a acusação, serviu para pagar obras de arte, festas privadas e até o filme <em>O Lobo de Wall Street</em>. O julgamento começa amanhã, quarta-feira.
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Foram milhões e milhões, desviados através de um esquema criado pelo herdeiro político da Malásia e sustentado por um playboy fascinado por Hollywood e que um dia quis a cantora Britney Spears a sair do seu bolo de aniversário. E conseguiu-o. O escândalo financeiro ficou conhecido como o "maior caso de cleptocracia do mundo". O julgamento começa nesta quarta-feira, 3 de abril, em Kuala Lumpur. No banco dos réus está o ex-primeiro-ministro da Malásia, Najib Razak, que se declara inocente. Em causa estão cerca de 4,5 mil milhões de euros.

De acordo com os procuradores dos EUA e da Malásia, o dinheiro acabou por ser direcionado para as contas de uns quantos poderosos e foi usado para comprar imóveis de luxo, um jato particular, obras de Van Gogh e Monet - e ainda para financiar o filme O Lobo de Wall Street, protagonizado por por Leonardo DiCaprio.

Os tentáculos do escândalo do 1MDB - o nome do fundo criado por Razak, que era o presidente do conselho consultivo - estenderam-se a todo o mundo: as autoridades de pelo menos seis países detetaram uma vasta rede de transações financeiras realizadas através de bancos suíços e paraísos fiscais.

O escândalo levou à queda do partido político que governou a Malásia desde que o país se tornou uma nação independente. O Goldman Sachs, um dos bancos mais poderosos de Wall Street, é um dos visados, embora negue as acusações. Há ainda um playboy - procurado na Malásia e nos EUA: as autoridades ainda só conseguiram "caçar" o seu iate de luxo, avaliado em 250 milhões de dólares.

A investigação jornalística que denunciou o escândalo financeiro fez o óbvio: seguiu o rasto dos dólares. A BBC traçou o perfil dos principais rostos - e alegados responsáveis - do esquema.

Najib Razak: amigo de Obama e cabecilha do esquema

O ex-primeiro-ministro da Malásia descende da aristocracia política do país. É o filho mais velho do segundo primeiro-ministro da Malásia, Abdul Razak, e sobrinho do terceiro homem a ocupar o cargo. Foi Najib Razak quem criou o fundo 1MDB, em 2009, com o objetivo de impulsionar o desenvolvimento económico da Malásia.

No entanto, durante muito tempo e para muitos nomes de relevo - como Barack Obama ou David Cameron - o político era um homem que poderia trazer alguma modernidade à Malásia. Rasak estudou Economia Industrial na Universidade de Nottingham, em Inglaterra, e costumava discursar sobre a importância do "islão moderado".

No entanto, quando era ministro das Finanças já havia desconfianças em relação à sua atuação. No decorrer da compra de um submarino, em 2002, houve suspeitas de desvio de verbas e a manequim da Mongólia que serviu de intérprete para a compra do submersível foi assassinada - França continua a investigar a morte e só recentemente a Malásia reabriu o caso. O ex-político diz que nunca a conheceu.

O que era o 1MDB?

Era uma forma de gerir a riqueza da Malásia através de investimentos estratégicos. Os primeiros alertas chegaram em 2015, quando falhou os primeiros pagamentos devidos a bancos - mas há muito que investigadores e jornalistas "farejavam" o fundo.

Em julho de 2016, o Departamento de Justiça dos EUA entrou com uma ação civil alegando que mais de 3,5 mil milhões de dólares tinham sido roubados - o valor foi depois ratificado para 4,5 mil milhões.

"Um número de funcionários corruptos tratou o fundo público como se fosse uma conta bancária", disse a então procuradora-geral dos EUA, Loretta Lynch. Houve uma lista de nomes que foi tornada pública, mas o número um dessa lista ficou desconhecido: era Najib Razak, e foi o seu próprio governo que confirmou a sua identidade. Foi acusado pelos EUA de ter roubado 681 milhões em fundos, apesar de ter devolvido a maior parte.

O ex-primeiro-ministro acabaria por ser declarado inocente de todas as irregularidades cometidas, mas assim que a oposição tomou o poder e Razak foi afastado, a atitude das autoridades mudou radicalmente, com a polícia a invadir os seus apartamentos e a apreender bens de luxo e 28,6 milhões de dólares em dinheiro.

Está atualmente acusado de 42 crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e abuso de poder. Declara-se inocente em todos eles.

Rosmah Mansor: a "Marie Antoinette" malaia

A mulher de Najib Razak gostava tanto de luxo e ostentação que é comparada a Imelda Marcos e à rainha Marie Antoinette. Também ela é acusada de lavagem de dinheiro e evasão fiscal, mas, tal como Rasak, declarou-se inocente.

As imagens dos carros de supermercado com mais de 500 carteiras de marca, centenas de relógios e 12 mil joias - com um valor estimado em 273 milhões de dólares - invadiram as redes sociais. Uma vida de luxo num país onde a maioria da população luta para sobreviver. Rosmah tinha um capricho: adorava carteiras da marca Hermès Birkin, e foi duramente criticada por isso.

Rozanna Latiff, correspondente da agência de notícias Reuters, disse à BBC que "nos dias em que Rosmah Mansor é chamada para interrogatório há muito interesse com o que veste".

Mahathir Mohamad: o redentor

Regressou à política da Malásia aos 93 anos, depois de ter liderado o governo do país nas décadas de 1980, 1990 e início de 2000. Voltou para derrotar Najib Razak, que tinha ajudado a lançar. "Peço desculpas a todos, que fui eu quem o elevou, o maior erro da minha vida. Quero corrigir esse erro", disse Mahathir na campanha eleitoral de 2018, depois de ter passado para o partido da oposição só para derrubar o antigo protegido, Razak.

Jho Low: o playboy em fuga

Os procuradores norte-americanos dizem que Jho Low usou os seus contactos políticos para conseguir negócios para o 1MDB em troca de um pagamento de centenas de milhões de dólares. Muitos mil milhões terão sido branqueados através do sistema financeiro dos EUA e usados ​​para comprar alguns dos imóveis mais caros do mundo, obras de arte milionárias e até para financiar produções cinematográficas em Hollywood.

Além das festas extravagantes e das amizades com a realeza árabe e celebridades - Britney Spears saiu do seu bolo de aniversário em 2012, em Las Vegas -, os jornalistas que se dedicaram à investigação do escândalo financeiro afirmam que Jho Low pode ter sido a pessoa que teve mais acesso a dinheiro líquido no mundo. Depois da queda de Najib Razak tornou-se um fugitivo - no entanto continua a dizer-se inocente através de um blogue.

Foi através de Jho Low que o escândalo financeiro com origem na Malásia envolveu celebridades e estrelas de cinema como Leonardo DiCaprio, o protagonista do filme O Lobo de Wall Street. Lançado em 2013, o filme foi coproduzido e financiado por Riza Aziz, filho de Rosmah Mansor e enteado de Najib Razak. O Ministério Público dos EUA diz que foi o dinheiro do fundo que financiou o filme.

DiCaprio tem colaborado com as autoridades e chegou a entregar um quadro de Picasso à polícia: tinha sido Low a oferecer-lhe a obra.

Paris Hilton, o músico Kasseem Dean (também conhecido como Swizz Beatz) e Alicia Keys eram algumas das celebridades próximas do playboy que terá comprado um quadro de Van Gogh e duas pinturas de Monet com fundos do 1MDB.

Jho Low vivia em grande: navegava no seu iate de luxo durante dez dias pela Europa, oferecia presentes milionários a supermodelos - como um piano de cauda transparente com um valor estimado de um milhão de dólares - e organizava jantares em praias particulares.

Timothy Leissner

Banqueiro alemão numa das instituições financeiras mais poderosas do mundo, o Goldman Sachs, juntou-se a Jho Low depois chegar a presidente da empresa na Malásia. Leissner e outro banqueiro do Goldman, Roger Ng, usaram aos contactos de Low para obter negócios vantajosos para a empresa - que no início não quis trabalhar com o malaio por duvidar da origem do seu dinheiro.

O banco terá cobrado honorários na ordem dos 600 milhões de dólares depois de ter conseguido angariar e subscrever três vendas de títulos que renderam 6,5 mil milhões para o 1MDB, em 2012 e 2013.

Leissner declarou-se culpado das acusações dos EUA de conspiração com vista à lavagem de dinheiro e por ter violado as leis anticorrupção ao subornar autoridades estrangeiras. A Malásia acusou também Timothy Leissner, além de Roger Ng e o Goldman Sachs.

Roger Ng deixou a empresa em 2014 e nega todas as acusações. O Goldman Sachs também nega qualquer irregularidade e suspendeu Leissner em 2016, acusando-o de ser desonesto. O grupo financeiro pediu desculpas pelo comportamento, mas o governo da Malásia rejeitou e solicitou ao banco para ressarcir o país em 7, 5 mil milhões de dólares.

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