Como Moreno desmascarou o jornalista-estrela da Der Spiegel
Em dezembro, a Der Spiegel acordou para um dos episódios mais negros da sua história: um dos seus mais prestigiados jornalistas tinha, afinal, inventado grande parte das reportagens e das personagens. Há um responsável pela descoberta deste grande embuste jornalístico - chama-se Juan Moreno, tem 47 anos, e não descansou enquanto não arranjou provas para que acreditassem no que estava a dizer, uma luta que não se revelou nada fácil. Era a palavra de um freelancer contra as histórias publicadas por uma verdadeira estrela - Claas Relotius, quatro vezes vencedor do grande prémio de jornalismo alemão e jornalista do ano da CNN.
O processo foi difícil, mas Moreno - que em criança emigrara com os pais espanhóis para a Alemanha - é agora considerado um herói. Um país inteiro que embarcou na fraude jornalística de um único homem de 33 anos - na era das fake news o debate sobre a qualidade e a importância do jornalismo tornou-se mais aceso do que nunca.
Moreno conseguiu provar a sua teoria, mas com isso demonstrou também que a prestigiada revista alemã não conseguiu ver o que se estava a passar. Já depois de Relotius ter assumido as suas mentiras, os responsáveis da Der Spiegel admitiram que deviam ter estado mais atentos aos sinais. Por exemplo, quando Relotius pediu para que as suas peças não fossem publicadas online em inglês ou para que não fossem colocadas no site fotos da edição impressa. Agora foi criada uma comissão de investigação.
"Não sou nenhum herói, nem o grande defensor da verdade. Não me restava outra alternativa. Tenho quatro filhas e por um momento vi-me na rua porque o meu nome aparecia num artigo cheio de erros. Foram cinco semanas horríveis. Sabia que algo não estava bem, mas ninguém acreditava em mim. A frustração era total", disse ao El País, que se encontrou com Moreno na sua casa em Berlim e conta todo o processo.
E como chegou Juan Moreno a esta descoberta? Tudo começou quando estava no México a acompanhar uma caravana de migrantes que tentavam entrar nos Estados Unidos e lhe ligaram da revista a dizer que iria escrever uma reportagem em conjunto com a grande estrela da redação - Moreno acompanharia um migrante até à fronteira e, do outro lado, Relotius seguiria um grupo de milicianos civis dispostos a impedir a entrada destas pessoas. A reportagem foi publicada no início de novembro de 2018, com o título "A Fronteira de Jaeger".
Juan Moreno não ficou entusiasmado por ir fazer uma reportagem a meias com um jornalista famoso. Se por um lado não conhecia Relotius, por outro também já tinha lido um texto dele sobre um assessor fiscal cubano que o deixara intrigado.
Cada um fez o seu trabalho. Até que Moreno recebe o texto já escrito e encontra detalhes que não lhe faziam sentido. Foi a primeira vez que alertou que algo estava mal. Mas o departamento de comprovação de dados e documentação não fez caso. Chega-lhe a segunda versão do texto com acrescentos de Relotius - pela primeira vez surgia a cena final em que um miliciano tinha disparado contra algo que se movia, insinuando que se tratava de um migrante.
Moreno ficou com a pulga atrás da orelha. "É impossível que um bom jornalista presencie uma cena destas e não a inclua num primeiro momento", disse ao El País.
Juan Moreno começou então a sua luta intensa pela verdade. Diz que lhe roubou o sono, mas em nome dessa verdade não podia deixar que o seu nome ficasse associado àquela reportagem sem fazer nada. É então que encontra um artigo publicado nos Estados Unidos com algumas semelhanças com o de Claas Relotius. Nessa reportagem havia também um miliciano chamado Jaeger, embora nem todos os detalhes da personagem coincidissem.
Outro facto: Moreno reconhece Tim Foley, um miliciano que tinha visto num documentário premiado, numa das fotos publicadas pela Spiegel e comprada ao The New York Times. Volta a pegar no telefone e fala com a editoria de Sociedade. Mas ninguém fez caso dos seus alertas.
Nesse entretanto, Relotius liga-lhe e questiona-o diretamente se tem alguma coisa para lhe dizer. Moreno conta ao El Pais que ainda lhe fez algumas perguntas, mas sem nunca dizer o que já tinha descoberto. "Dei-me conta de que estava a mentir e que se tratava de um problema muito gordo."
Foram cinco semanas intensas que Moreno passou a recolher elementos para desmontar as histórias e desmascarar Relotius - mas ninguém acreditava nele, aos responsáveis do Der Spiegel não lhes passava pela cabeça que a estrela da redação inventasse as suas histórias e os protagonistas. Numa viagem de trabalho aos Estados Unidos, o repórter freelancer aproveita então para ir à procura dos supostos entrevistados por Relotius na reportagem sobre a fronteira com o México. Fez 800 quilómetros de carro até encontrar Foley e Chris Maloof, a quem mostrou uma foto do jornalista. Tanto um como outro garantiram, em declarações gravadas em vídeo, que nunca tinham falado com ele.
Moreno mostrou os vídeos em Hamburgo, sede da Der Spiegel. Relotius, por seu turno, argumentou que sendo uma reportagem sobre atividades ilegais era normal que não reconhecessem que as tinham praticado.
O facto de continuarem sem dar crédito à sua denúncia não demoveu Moreno que se enfiou na hemeroteca a ler os artigos de Relotius. Foi então que encontrou um artigo em que o prestigiado jornalista da Der Spiegel tinha, supostamente, falado com os pais de Colin Kaepernick, quando a família do jogador de futebol americano que protestou contra o racismo recusara falar com a imprensa, incluindo a alemã.
Até que a 3 de dezembro uma mulher, de nome Janet, mandou um mail. Era a responsável pela imprensa do grupo de vigilantes que supostamente Relotius tinha acompanhado no Arizona. E fazia uma pergunta simples: como era possível ter feito um artigo sobre eles sem lá ter ido? Relotius alterou o texto para parecer que ela perguntava porque tinha passado tão pouco tempo com eles.
Moreno não descansou, não podia cruzar os braços quando o seu nome aparecia numa reportagem que tinha uma parte completamente falsa. Convenceu os editores que tinham acedido ao seu computador. E a 13 de dezembro, os editores reuniram-se com um informático que comprovou que Relotius tinha manipulado o correio e nunca tinha estado com os patrulheiros no Arizona.
Relotius acabou por confessar. Justificou-se, dizendo que foi movido pelo "medo do fracasso" e que "a pressão para não falhar foi crescendo à medida que ia tendo mais êxito".
A descoberta de que um dos seus principais repórteres inventava histórias caiu que nem uma bomba na Der Spiegel, uma revista que tem um departamento que se dedica ao controlo e verificação da veracidade dos artigos publicados. Depois de ter pedido imediatamente desculpa aos leitores, a 22 de dezembro, foi publicado um número especial com uma manchete a vermelho: "Conta o que é". Os responsáveis decidiram ir buscar palavras do fundador, Rudolf Augstein, as mesmas que ocupam um lugar de destaque na redação de Hamburgo. Em 23 páginas, a Spiegel fazia um mea culpa e admitia que deviam ter estado mais atentos aos sinais.
Ao todo, Claas Relotius escreveu 60 artigos para a Der Spiegel e publicou ainda noutros títulos alemães. Todos agora andam a tentar perceber se o que lá está escrito é verdade. Enquanto isso, as suas reportagens na revista ganharam um rótulo: "pode ter sido fabricado". A revista criou uma comissão de investigação com veteranos da casa e mais a ex-diretora do Berliner Zeitung.
"Como editores da Der Spiegel, temos que reconhecer que falhámos de forma considerável. Relotius conseguiu anular todos os mecanismos de de garantia de qualidade da empresa", afirmou o diretor Steffen Klusmann.
Juan Moreno ganhou uma luta, mas chegou a temer o pior: "Deram-me a entender que teria sérias consequências para mim. Que me tinha atrevido a meter-me com Deus. Eu estava convencido que ia perder o meu trabalho e que ninguém me iria querer contratar com esses antecedentes.