Como Merkel mudou a vida de Ahmad, o menino sírio que quer ser como Ronaldo
No centro do relvado sintético do campo do SV Babelsberg 03, em Potsdam, Ahmad Alzaher distingue-se dos demais colegas com quem treina naquela tarde. Não apenas pelo aspeto árabe, mas também porque o seu equipamento branco, que tem escrito nas costas o N.º 7, contrasta com o azul escuro do dos restantes jogadores da equipa infantil daquele clube da terceira divisão alemã. Trouxe-o de um campo de férias do Real Madrid, onde passou uma semana no verão de 2016, um ano depois de ele e a família terem chegado à Europa fugidos da guerra na Síria. Apesar de viver na Alemanha, é naquele clube espanhol que o sírio, de apenas oito anos, quer poder vir a jogar um dia. Porque é lá que joga o seu ídolo, o português Cristiano Ronaldo, que sonha conhecer.
"Vejo a sua técnica. E gosto muito. Sei que ele também era pobre quando era pequeno. Se um dia o pudesse conhecer dizia-lhe que gosto muito dele e que quero ser como ele", afirma Ahmad ao DN, com um brilho nos olhos de quem realmente acredita que isso vai ser possível. No banco, Mohammed Alzaher, o pai, torce por ele e ele, cada vez que termina um exercício, procura no olhar deste um sinal de reprovação ou aprovação em relação ao que acabou de fazer. Normalmente, coincide com o que o treinador ou treinador adjunto lhe estão a dizer em alemão. Chegados há dois anos à Alemanha, depois de uma viagem atribulada por quase uma dezena de países, Ahmad e o pai dizem já falar razoavelmente alemão graças à escola e ao curso para adultos. O treinador diz-lhe para darem cinco toques na bola, sem parar, mas ele já vai em quase dez. "Quando ainda não estava no clube, eu treinava com ele, todos os dias. Às vezes ficávamos três ou quatro horas a treinar", conta o pai, orgulhoso, enquanto vai fazendo gestos subtis e indicativos. Em casa estão Afaf Alzaher, a mãe, a irmã desta, Zahra, a cuidar de Fatima, a irmã de Ahmad, com apenas seis meses. Esta, apesar de já ter nascido na Alemanha, não tem automaticamente direito à nacionalidade.
A família, oriunda da cidade costeira de Jableh, 25 Km a sul de Lataquia, habita uma casa cedida pelas autoridades alemãs e recebe uma série de benefícios sociais. Mas não foi logo aí que viveram quando chegaram a Potsdam. Primeiro estiveram num campo de refugiados da zona. Foram para ali encaminhados depois de serem apanhados a atravessar a fronteira vindos da Áustria em 2015. "Antes da guerra, a vida na Síria era fácil, um paraíso, bastava que apenas um elemento da família trabalhasse para conseguir sustentar uma casa. Depois veio a guerra. A miséria. Carros-bomba explodiam nas ruas. Os homens que iam combater com o Exército sírio morriam", descreve Mohammed, de 40 anos, relatando a aventura de chegar à Europa. "Viemos da Síria, para o Líbano, depois para a Turquia, Grécia, passámos pela Macedónia, Croácia, Eslovénia, Áustria, etc... Na altura deixavam-nos passar de uns países para os outros pois desde que não ficássemos num, para eles estava tudo bem e podíamos continuar sempre para o próximo. No meio do mar, a certa altura, pensei que íamos morrer, porque o motor do barco avariou. Houve dias em que dormimos na floresta, outros na rua, tínhamos medo, eu não podia dormir, tinha que estar vigilante porque era o responsável pela família", explica, contando que pagou cerca de três mil euros aos traficantes que facilitam a passagem dos refugiados. 18 dias foi o tempo que passaram nisto. Ao longo de todo o trajeto, conta Afaf, de 37 anos, Ahmad nunca largou a bola e as chuteiras que trouxe da Síria. Afaf não fala ainda bem alemão, porque como ficou grávida deixou de ir entretanto ao curso, mas um amigo da família, Sam Jou, de 28 anos, também ele sírio, natural de Lataquia, ajuda na tradução do árabe sírio. Sam trabalha com refugiados, de várias nacionalidades, na organização BBZ. "Quando vejo Ahmad a jogar perco a noção do tempo. Desde cedo percebi que tinha talento. É grande fã do Ronaldo".
Mohammed, que trabalhou como barbeiro e cabeleireiro na Síria, também jogou futebol. Depois lesionou-se num ombro e, como não tinha dinheiro para se tratar, desistiu de jogar. Mas a paixão ficou-lhe sempre e quando percebeu que Ahmad partilhava dela decidiu tudo fazer para que o filho um dia pudesse ser jogador de futebol a sério. E assim foi. "Estou contente por termos chegado à Alemanha. Ao contrário do que pensava aqui as crianças não podem assinar com clubes. Mas tratam-nos bem. Apesar de sentir muito a falta da minha cultura, da convivência da família, dos amigos, dos vizinhos, que aqui não existe, a vida é boa na Alemanha". Quando e se a guerra acabar na Síria pensa regressar ao país com toda a família? "Pois não sei. Vamos ver. Mas por Ahmad, pelo seu futuro, sou capaz de fazer qualquer coisa, qualquer sacrifício". Se pudesse votar nas eleições legislativas de hoje em quem votaria? "Em Angela Merkel", responde Mohammed, abanando a cabeça, para reforçar a resposta óbvia. "Não percebo muito da política alemã mas creio que ela é uma pessoa de grande humanidade porque abriu a porta a todos", sublinha o pai de Ahmad, enquanto fuma uma shisha, sentado no sofá da sala. Essa política de porta aberta, que os refugiados sírios tanto elogiam, é precisamente a razão pela qual muitos criticam a chanceler conservadora, na Alemanha, mas também fora dela. A AfD, por exemplo, partido populista de direita que se prepara para ser a terceira formação mais votada hoje, acusa Merkel de ter criado um efeito de chamada que trouxe mais de um milhão de refugiados à Alemanha. E quanto a Ahmad, que tanto ensaia as palavras para dizer um dia a Ronaldo, o que diria a Merkel? "Eu não sei quem é ela", admite, provocando a gargalhada da família. Encolhe os ombros. E sorri.
Em Potsdam