Como escutar o Bem, como detectar o Mal

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- Já que a visão não dá, talvez a audição sirva para ouvir o Bem.

- A audição? Será que se pode ouvir o Bem? O Bem tem som? Tem orquestra?

- Não sei. Sei que o Mal tem som. Isso é evidente, Quer ouvi-lo?

- Sim. Mas posso ouvir?

- Claro que pode.

- Não fico mau se ouvir o som do Mal?

- Não, claro que não,

(ele tira o rádio do bolso, põe o pequeno rádio no ouvido do outro).

- Está a ouvir?

- Estou. Este é o som do Mal?

- É. Não se percebe logo?

- O som do Mal?... ou apenas um som péssimo? Má música, em suma.

- Talvez o rádio não esteja bem sintonizado.

- Que disparate. Estou a ouvir perfeitamente. Distingo o Dó do Ré. E assim por diante. O problema não é esse.

- Não?

- O problema é que este rádio está sintonizado na orquestra do diabo.

- Que expressão terrível e, ao mesmo tempo, bela. O diabo tem orquestra? Tem um conjunto musical?

- Tem, claro que tem. Ouça isto.

(O outro põe o rádio no ouvido. Demora uns segundos.)

- Sim, é verdade. Estes músicos deveriam ser presos. Não por razões estéticas, mas por razões éticas.

- Exacto.

- Quem toca assim, tão desacertadamente, introduz a maldade no mundo.

- É o que me parece.

- E haverá uma orquestra de santos?

- Uma orquestra de santos?

- Sim, uma orquestra da bondade? Há isso?

- Talvez exista, mas não conheço. Há solistas. Um santo aqui, outro acolá. E cada um no seu canto. Quer canto físico quer canto de voz. Cada um está no seu espaço a cantar a sua canção. São santos, mas pouco sociáveis.

- Compreendo.

- Há portanto um som do Bem.

- Sim.

- Mas ouve-se mal, desculpe-me a expressão, porque é uma vozinha aqui, outra acolá. Um Dó Ré Mi aqui, outro acolá.

- Exacto.

- Enquanto o Mal, pelo contrário, organiza-se. As suas vozes juntam-se. Os seus instrumentos de corda aproximam-se, os tambores, os metais. Enfim, tudo se concilia harmoniosamente. Gostam de estar juntinhos, os músicos Maus.

- Ouça isto (passa-lhe de novo o rádio para o ouvido. O outro escuta um pouco e depois faz uma cara de repulsa).

- Que horror. Que som é este!? Como é possível!?

- Chamam-lhe modernidade.

- Modernidade?

- Sim. Modernidade.

- Ah, meu caro, que tempos estes!

- Sim, que tempos...

- Em que chegamos a ter saudades do Mal antigo.

- Do som que o Mal antigo fazia.

- Era um som com melodia, pelo menos.

- Sim, a maldade antiga era harmoniosa, mais ou menos simétrica...

- ... como uma casa bem organizada. E não isto (e aponta para o rádio).

- Desligo o rádio?

- Sim. Desligue-o com este martelo. Desligue-o cem vezes seguidas com este martelo. Eis a única forma de terminar com o som moderno. Com o som do Mal.

- Com um martelo?

- Sim, com um martelo.

- E o som do martelo a destruir, a despedaçar o rádio?

- O que tem?

- O som do martelo a destruir. É o som do Bem?

- Se está a calar o som do Mal é porque é um som do Bem. É evidente.

- Sim, o martelo.

(Escutam-se dez, onze, doze marteladas.)

- Um som justo, não?

- Um som mais do que justo, meu caro, mais do que justo.

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