Como engordar uma personagem num romance

Isabela Figueiredo publicou um romance intitulado A Gorda. Que narrativa é esta?
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A dado momento do romance A Gorda, a autora Isabela Figueiredo escreve o seguinte: "A mamã é portuguesa. Nunca pretendeu destacar-se do trivial. Já não possui os grandes salões das casas dos brancos em África, espaços comuns para as refeições e o convívio, rendendo-se ao que é uso na terra onde nasceu e cresceu. A sala de jantar em Almada permanece fechada, mas encerrando Lourenço Marques no interior." Na página seguinte, a narrativa progride com o que aconteceu ao Tejo, um cão abandonado e envenenado que a protagonista recolhe da rua. Duas mais à frente, é a vez de contar a vida do Bobi, um animal velhote e sem casa, situação que toda a vizinhança resolve com a compra de uma casota...

Estes exemplos da narrativa de A Gorda não chegam para ocupar as 280 páginas deste primeiro romance da autora, após ter publicado um Caderno de memórias coloniais, que já vai na sexta edição, mas mostram algo do estilo delirante em que todo ele está escrito. Que se torna uma forma de o leitor escorregar logo na primeira casca de banana que Isabela Figueiredo colocara ao início e fez com que o leitor fosse escorregando.

Mesmo que no início, ao referir a gastrectomia que fez a protagonista perder quarenta quilos, até fizesse pensar que se estava a entrar nos delírios de um manual de autoajuda. O que em poucas linhas se vê que não é bem assim, pois já está a falar do papa Bento XVI que resignou e do Francisco que é um homem bondoso. Pode, então, ser um manual de religião e moral. Mas ainda na mesma folha refere-se Edward Snowden, o que mais sugere estar--se perante um thriller. Não, linhas a seguir, encontramos a troika e os seus efeitos devastadores sobre a população portuguesa. É economia, afinal... Olha que não, é autobiográfico: "Estamos em 2014. A mamã foi-se. Um dia chegará a minha vez (...)".

Não vale a pena o leitor perder tempo a catalogar A Gorda. Basta--lhe absorver o título! É de tudo um pouco, como a vida e a literatura. Cada pessoa tem uma história. Cada livro tem um argumento e a história que o suporta. Antes de mais, o melhor a fazer é não se ler a badana biográfica da direita e assim evitar a tentação de fazer ligações entre a autora e a protagonista. Pois o registo deste livro faz confirmar um pouco esse mito que diz que todo e qualquer romance é autobiográfico.

E vamos ao livro, A Gorda, a história de Maria Luísa, tão divertida como sofredora e algo pecaminosa. Se é que falar de política o é, se referir os retornados o é, se apontar o lado mau da velhice o é, se falar de sexo com namorados e ex-fixações o é, se Álvaro Cunhal obrigar os comunistas a votarem em Mário Soares na segunda volta o é, se perder a vontade de cozinhar e ir ao restaurante do Barbas o é...

Em A Gorda há uma ambiência de África que marcou várias gerações de portugueses e que se torna um revivalismo para os que nem sabem que houve um Império Colonial. Que é muito bem personificada através da relação inicial da protagonista com a Tony, que veio de Angola, e que é recheada de muitas mentiras, no caso da primeira premissa. No da segunda, vai-se percebendo o que representou o ultramar para milhares de portugueses, agora visto sem tanto ressentimento pelo que se perdeu e inspirador de novas gerações, como se fosse a lusa visão do África Minha da Karen Blixen. E há também outra ambiência, o da margem sul. Cova da Piedade, Almada, locais que os escritores pouco usam nos seus livros.

Para resumir A Gorda, diga-se que este é um livro que fala do amor, que, segundo sintetiza Isabela Figueiredo pela boca da sua protagonista, "é o primeiro dos mistérios". Os outros mistérios que estão espalhados página sim página sim deste romance - ou lá o que seja o género -, não sossegam o leitor. Apenas, exigem a leitura urgente deste e de um segundo livro, logo que possível, para se catalogar este.

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