Como é viver em Mumbai?

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Viver em Mumbai, uma cidade com 20 milhões, pode parecer uma aventura demasiado contrastante para quem viveu em Lisboa por mais de 50 anos. Para mim foi um reencontro com as minhas origens goesas, com a minha terra e o povo com quem convivi e cresci, rodeado de gritante pobreza.

As minhas referências de Goa e Índia são da infância e juventude e, do que fui apreendendo depois. Daí, a avidez de querer a Índia desenvolver-se velozmente. Tentei entendê-la no seu longo sofrimento: da exploração, do desrespeito e arrogância, da desorganização da sua indústria para benefício do colonizador britânico, que, no entanto, algo de positivo deixou: o modelo de organização política e democrática, uma língua, a unidade territorial, supressão de algumas práticas contrárias aos direitos humanos, etc.

Apesar das boas intenções dos governantes da Índia livre, a lastimável situação herdada não teve uma resposta eficaz, capaz de recuperar da miséria e da falta de trabalho. Eles não apelaram para as provadas capacidades da sua gente para empreender e transformar económica e socialmente o país.

Problemas sérios terão ocupado os governantes que, mesmo assim, legaram uma Constituição muito adulta, pensando nos potenciais problemas de um país com variadas etnias, línguas e religiões. Criaram instituições capazes de representar o povo e ter a funcionar os poderes para governar bem o país. Só foi pena que após a independência e até ao ano 1991, tenha vigorado um modelo económico decalcado no soviético, visando um rápido crescimento. E o que fora pensado para sair da pobreza fez-se um pesadelo, paralisante, com o país a crescer a taxas irrisórias, em média de 3,5%, quase sem criação de empregos. Além disso, deu-se um grande aumento da população pois já não se morria à fome, como antes.

Desde o primeiro momento pós-independência tentou-se ultrapassar o espectro da fome, importando quantidades ingentes de cereais, com o máximo de 9 MT em 1969. A revolução verde entretanto iniciada na Índia, melhorou a produtividade da terra e pô-la no caminho da auto-suficiência alimentar. Hoje, pode exportar mais de 20 milhões de toneladas de cereais, depois de alimentar a sua população e manter uma confortável reserva de segurança. Outra pequena revolução foi na produção de leite, através de Cooperativas, que levou a Índia desde o ano 1997 a ser o maior produtor mundial desse néctar.

A ideia de basear o crescimento na ciência levou à criação de institutos de grande nível (os IIT-Indian Institute of Technology, os IIM-Indian Institute of Management, os Medical Colleges, etc.). Estudantes de grande altura científica aí se formaram. Contudo, ao não terem possibilidades de aplicar os saberes na sua terra, boa parte emigrou para países que melhor os recebiam, como os EUA, que apreciavam a sua preparação, o saber e a iniciativa.

A diáspora indiana nos EUA afirmou-se com brilhantismo, ocupando altas responsabilidades em Instituições de Tecnologia, de Ciência Médica, de docência Universitária e em muitas Empresas Multinacionais.

Em 1991, por falta de recursos para as importações, deu-se a inevitável mudança do modelo do tipo soviético em curso, para o de livre iniciativa. E os resultados não se fizeram esperar: o controlo por parte dos burocratas, cada vez em maior número, fizera disparar a corrupção que atingia todos os níveis de decisão. Tratou-se, então, de eliminar o sistema de licenças, reduzir os impostos sobre as importações e exportações para níveis aceitáveis. E a partir dessa altura (1991), o crescimento foi-se acelerando para taxas bem superiores às da "hindu rate of growth", de 3,5% anual. A competição interna e externa acelerou a manufactura com boa qualidade e custos, impulsionada pela inovação.

Muitos produtos começavam por ser cópia, como os fármacos genéricos, que a Índia fabricava a custos baixos, para servir a sua paupérrima população. Isso facilitou também a exportação para os países pobres, primeiro, mas também para os ricos, quando a FDA- Food and Drug Administration dos EUA começou a homologar os processos e laboratórios onde eram fabricados. Esta indústria está hoje avaliada em $50 bn, e em alto crescimento

Surgiram, ainda nos anos 1980 e seguintes, algumas empresas de TI-Tecnologias de Informação, que deram um grande salto nos começos deste século. Para ser concreto, as 4 maiores empresas indianas de TI são hoje: a TCS-Tata Consultancy Services, 530,000 trabalhadores especializados; a Infosys, 335,000; a WIPRO, 232,000 e a HCL, 211,000. O sector produziu $230 bn, em 2022

As proezas na digitalização, uso da AI-Artificial Intelligence, das LM-Learning Machines, da robótica, da IoT-Internet of things, foram possíveis por a Índia dispor de uma ampla base de talento especializada em software e um sistema capilar de comunicações, com crescente uso do e-mail e do smartphone.

Os GCC-Global Capability Centres vêm fixar-se na Índia, pelos especialistas que encontram, para preparar as empresas multinacionais nas novas tecnologias. Há hoje 1500 GCC na Índia, ocupando 1,3 milhões de especialistas e mais 500 MNC deverão adicionar-se até ao ano 2026.

As empresas de montagem de smartphones trabalham intensamente. Uma delas anunciava duas instalações novas para ocupar 100.000+100.000 trabalhadores, em dois estados do Sul do país.

Há uma indisfarçável euforia no campo da aviação: a Air India (hoje empresa do grupo TATA) fez uma encomenda de 500 aviões à Boeing e Airbus. A Indigo que tem 56% do mercado aéreo doméstico está a preparar uma encomenda parecida.

As multinacionais de e-commerce estão ativas e a aprender muito com a Índia. Tanto a Amazon como a Flipkart (da Wal*Mart) apostam em mais centros de distribuição e entrega, promovendo campanhas de vendas com descontos especiais nas festividades importantes, que animam a economia toda.

Em infra-estruturas, em Fevereiro de 2023 havia um total de 3,600 km de auto-estradas em funcionamento. As grandes cidades têm o seu metro a funcionar, como Delhi (400kms), Mumbai (quer chegar a 300 kms, quando pronto), Bangalore, Hyderabad, Chennai, Agra, Jaipur, Kolkata, etc.

O turismo está a recuperar bem depois da covid. É um sector com uma infra-estrutura soberba de hotéis, de comunicações aéreas, de cruzeiros, de railways de turismo de luxo, de wi-fi e disponibilidade de bons hospitais. O CEO da Marriott afirmava que queria ter na Índia 250 hotéis em 2025, das diversas insígnias do grupo, quando tem actualmente 140 e inaugurará mais 13 este ano!

Toda a actividade de desenvolvimento do país tem muito a ver com Mumbai. Esta não é só a capital financeira, mas é o motor da poderosa dinâmica do país decidido a não parar, criando trabalho e boas condições de vida para todos.

As populações suportam bem a transição: cidades em obras, talvez lentas demais; construção civil abundante; passeios irregulares e cheios de buracos; falta de habitação para os trabalhadores migrantes... Porque têm a esperança firme de que bem depressa vai melhorar a vida de todos, sobretudo dos mais pobres... Bom seria que fosse quanto antes...

Professor da AESE-Business School (Lisboa) e do I.I.M. Rohtak (Índia)

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