Como a web está a mudar o mundo (outra vez)
O que têm em comum as agressões no Urban Beach e os sucessivos escândalos de assédio e abusos sexuais que têm Harvey Weinstein e Kevin Spacey como principais figuras? O facto de serem casos que provavelmente não existiriam se não fossem os "novos media" e as redes sociais.
No caso português, não é (infelizmente) a primeira vez que assistimos a uma situação em que as autoridades só atuam porque alguém divulgou na net um vídeo do incidente. Recentemente, vários casos de bullying e agressões entre jovens só existiram para a sociedade e os seus representantes eleitos porque houve vídeo nas redes sociais.
O fenómeno, no entanto, não é exclusivo de Portugal. É possível encontrar praticamente em todo o mundo democrático casos de crimes, abuso de autoridade ou injustiça social que só viram a luz do dia (e tiveram consequências para os seus autores) porque os cidadãos comuns têm permanentemente à disposição a poderosa ferramenta da comunicação imediata.
Tinha razão o músico Peter Gabriel quando disse, há 25 anos, que as câmaras nos telemóveis iriam ser a maior ferramenta de defesa das pessoas alguma vez criada. Gabriel foi, aliás, cofundador, em 1992, da organização WITNESS, que possibilita a qualquer pessoa no mundo divulgar fotos e vídeo não editado de situações atentatórias dos direitos humanos.
Noutra vertente (ainda que não menos importante) estão os casos de abuso ou assédio sexual que têm surgido na indústria do entretenimento - no que, ao que tudo indica, será a mera ponta do icebergue da cultura de impunidade relativamente aos abusos de poder que existe um pouco por todo o mundo empresarial. Esta procissão, como costuma dizer-se, nem sequer ainda chegou ao adro.
É o caso de Harvey Weinstein que abre as comportas para esta enchente de queixas. E, ainda que quem inicia tudo seja um old media - o jornal The New York Times publicou uma história detalhando décadas de abusos do produtor de Hollywood -, é nas redes sociais que a onda se gera. Se não houvesse Twitter, onde rapidamente milhares de pessoas partilharam os seus casos utilizando a hashtag #MeToo, e as restantes redes sociais, provavelmente a questão teria "morrido" com a queda em desgraça de Weinstein.
Foi assumidamente inspirado por este movimento que o ator Anthony Rapp ganhou coragem para, em entrevista ao BuzzFeed (órgão de comunicação exclusivamente digital criado para tirar o melhor proveito das "novas ferramentas" de comunicação), denunciar o abuso que sofreu - aos 14 anos - de Kevin Spacey.
Esta história está ainda a ser escrita - neste sábado, a Netflix despediu a estrela de House of Cards e até cancelou um filme de Spacey que estava quase pronto. Mas certo é que, tal como Weinstein, Spacey viveu durante décadas - e com considerável êxito - a abusar (sexual ou moralmente) de pessoas sem que nada lhe acontecesse.
A história demonstra que o mais difícil de mudar na humanidade são as mentalidades. Da escravatura ao papel da mulher nas sociedade, foram sempre precisas várias gerações para que as pessoas alterassem convicções e comportamentos. Hoje, a tecnologia que nos permite comunicar instantaneamente e a liberdade de expressão conquistada no mundo civilizado leva a que sejamos confrontados com realidades que de outra forma passariam despercebidas.
Obviamente que esta realidade tem custos (redução de privacidade, por exemplo) e riscos (abusos de poder, manipulação de informação, os trolls, que vivem para destruir, etc.), mas os ganhos têm superado os inconvenientes. E, apesar de tudo, o mundo está sem dúvida a ficar melhor.