Como a vida fantástica de Susana mudou num segundo
Imagine que tinha a vida que queria. Uma vida preenchida com as viagens com que sempre sonhou, com memórias inesquecíveis dos mergulhos que deu em mares que explorou, das escaladas, das aventuras no canyoning... Imagine ainda que adorava o trabalho que fazia, que tinha duas filhas e amigos fantásticos... Imagine que uma queda lhe muda o rumo da vida. É difícil, não é? Só com a ideia sente-se um murro no estômago. Mas acontece. A qualquer um... Esta é a mensagem que os amigos de Susana Palma querem deixar.
Susana é uma mulher apaixonada pela vida, uma exploradora de montanhas e de mares, uma força da natureza, amiga do seu amigo, "como não há igual", dizem-nos. Susana é uma lutadora. É, no presente. Porque assim falam dela os amigos que a amam, que cuidam dela e que acreditam que um dia há de voltar "ao nosso mundo e às nossas vidas", afirmam. Talvez não como era completamente, porque a vida mudou, mas sempre como Susana. Por isso aceitaram falar dela ao DN, numa conversa em que estiveram três dos nove amigos que compõem o núcleo duro, assim se intitulam, que cuida da Susana, "porque há muitos mais que se têm juntado a esta causa".
Catarina, Goreti e Raquel confessam que aceitar ou não esta entrevista foi discutido entre todos. "Será que a Susana aceitaria esta exposição?", questionaram-se. Mas a Susana de hoje precisa de ajuda. "A Susana pode ficar como está ou melhorar. Acreditamos que vai melhorar, mas ou aceitamos a nossa amiga como ela é agora e cuidamos dela, enfrentamos a situação e estamos ao lado dela, ou viramos as costas. Isto é a vida. São os desafios que nos vão aparecendo. Talvez não precisasse de ser tão dura", desabafa Goreti.
O sim a esta conversa surge pela noção clara de que a Susana de hoje precisa de ajuda. Por ela, os amigos criaram a Associação Edificar a Esperança e esperam que um dia ela a agarre e continue o trabalho para ajudar outras pessoas. Mas este domingo a associação leva ao palco do Teatro da Luz, em Lisboa, um espetáculo de angariação de fundos para o plano de reabilitação da Susana. Internada neste momento no Hospital do Mar, os cuidados que lhe são prestados ascendem a mais de oito mil euros por mês. Por isso, a esta ação outras se seguirão. "Os custos são elevados", concordam. "Tudo tem sido possível graças aos donativos feitos à associação", explicam. Mas a Susana "é uma força da natureza e acreditamos que um dia, sabe-se lá porquê, vai haver um momento em que há de querer voltar. E, aí, será a lutadora que sempre foi", diz Catarina, madrinha da filha mais nova de Susana e uma das amigas do núcleo duro que formou a associação, que "surge por percebermos ser preciso um instrumento legal para ajudar a Susana. O apoio de que necessita vai desde os cuidados de saúde aos jurídicos", dizem.
A vida trocou as voltas a Susana Palma no dia 26 de agosto de 2017, dois dias antes de fazer 41 anos, dois dias depois de regressar de umas férias na Jordânia. A queda de um muro de três metros esmagou-lhe o hemisfério esquerdo, provocando-lhe um traumatismo cranioencefálico grave. Foi no Algarve, na zona de Alcoutim, de onde eram os pais. Nesse mesmo dia tinha deixado Lisboa depois do almoço com as filhas, Inês e Sofia, na altura com 12 e 7 anos. Iam de férias. Havia as festas de verão, para as quais foram ao final da tarde, para se juntarem ao resto da família. Pouco depois, tudo mudava. Susana, não se sabe como, se se desequilibrou ou se escorregou, caía do muro depois de receber uma coisa da filha mais nova. "Ainda se levantou e gritou pelas filhas", contam-nos, mas depois entrou em convulsões e foi imobilizada.
Os bombeiros que estavam na festa levaram-na para o Hospital de Faro. Entrou em coma, os exames médicos apontavam mais para morte do que para vida, diziam os médicos. Os amigos fizeram uma escala para que todos os dias alguém estivesse com ela. O Paulo Maria, um amigo do mergulho, e a Magna estavam de férias no Algarve e foram eles que asseguraram o acompanhamento na altura. Catarina ia todas as quintas-feiras para falar com a neurologista. "Foi dramático ver as TAC da Susana", conta.
Um mês depois, já no final de setembro, Susana sai do coma e vem para a Unidade de Cuidados Intensivos do Serviço de Neurocirurgia do Egas Moniz. "Fizemos tudo para a trazer para o hospital de residência. Não conseguimos pelo INEM, só a transportavam com autorização do Hospital de Faro e isso não aconteceu. Veio numa outra ambulância." Quando chegou a Lisboa, Pedro, o ex-marido e pai das filhas, e Catarina estavam lá. "O Pedro entrou primeiro e saiu a dizer que ela estava de olhos abertos e a sorrir. Ficámos felizes, mas disse-me: estás preparada para o que vais ver?", conta Catarina. "Quando entro, a imagem que tenho é a de uma bola de futebol amassada quando mordida por um cão na praia. Foi um murro no estômago."
Mas ali a Susana começou a recuperar do ponto de vista cognitivo. "Ia vê-la e dizia-lhe: sou a Cat., era assim que ela me tratava. E começou a reagir. Dizia que sim e não com a cabeça, começou a dizer algumas coisas. Achávamos que nos reconhecia, embora os médicos nos dissessem sempre que era uma situação muito grave." Logo a seguir, Susana teve de lutar contra várias infeções - respiratória, pulmonar, meningite e encefalites - "umas mais graves do que outras", que a fizeram lutar de novo pela sobrevivência. Os médicos decidiram recolocar o calote e "houve um afundamento da consciência, o que quer que isso seja, foram os termos que utilizaram para nos explicar a situação. A partir daí, ela regrediu, ficou completamente letárgica. O olho vivo que tinha antes, quando estava na UCI, perdeu-o", explica uma das amigas.
Catarina, Goreti e os outros iam vê-la todos os dias, à hora de almoço ou ao fim da tarde. As suas vidas mudaram também. Passaram a organizar-se de forma a estar sempre alguém com ela. Em novembro foram surpreendidos, o hospital disse-lhes que queria dar alta à Susana. "E nós respondemos: como assim?" A Susana vivia com as filhas, que foram para casa do pai, a mãe tem alguma idade. "Foi aí que decidimos que tínhamos de fazer alguma coisa. Começámos à procura de unidades de cuidados continuados que a pudessem recebê-la e dar a resposta que necessitava para recuperar", adianta Goreti, a amiga que conheceu Susana numa festa de anos de Catarina, que passou a ser sua parceira de caminhadas e depois uma amiga para sempre.
No hospital, os médicos aconselharam-nos a puxar por ela nos primeiros seis a nove meses, "o que não fosse recuperado até aí, depois seria difícil". "Perguntei ao neurocirurgião que a acompanhou o que faria se fosse um familiar seu, onde o colocaria? Disse-lhe que a Susana é uma mulher nova, superindependente e uma força da natureza. Ele recomendou alguns locais e começámos a procurar ", relembra Catarina. "Procurámos unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a resposta levava dois a três meses, e mesmo assim não tinham alguns dos cuidados de que a Susana precisava, como a eletroestimulação. A empresa onde a Susana trabalhava, a Fresénius, ligada à área dos medicamentos, fez um donativo de 20 mil euros, o que nos permitiu avançar para a unidade que achámos que melhor podia responder às necessidades", diz.
Foi para o Hospital do Mar em dezembro, "a evolução tem sido francamente boa e acreditamos que ainda pode evoluir muito mais do ponto de vista cognitivo e motor", argumentam, mas todos têm noção de que o mundo de Susana neste momento ainda se divide em dias sim, dias não ou em momentos ON e OFF. "Não sabemos se nos reconhece quando nos abraça e sorri, se sabe quem somos, queremos acreditar que sim. Se calhar até sabe. Até se apercebe de nós e apenas não consegue expressar-se", comentam.
Raquel, madrinha da filha mais velha, Inês, diz que "estamos mais conformados". Mas há dias em que "o murro no estômago é maior do que noutros dias", remata Catarina, que visita a comadre aos fins de semana e que esteve presente no dia em que as filhas, hoje com 14 e 8 anos, voltaram a ver a mãe depois do acidente. "Foi a 23 de dezembro, elas pediram muito ao pai para a ver antes do Natal. O Pedro combinou tudo e pediu-me para estar presente. Quando chegámos ao Hospital do Mar, a Susana estava sentada e a olhar pela janela. As meninas chamaram: "Mãe", mas nessa altura pouco reagiu. "Agora já se ri, tenta interagir. Também já leu o nome de uma técnica numa sessão de terapia da fala, mas não voltou ainda a fazê-lo." Mas são estes momentos que levam Pedro, o pai das filhas, Catarina, Goreti, Raquel, os manos Paulo e Pedro Pereira, o Paulo Maria, a Magna, a Marta a acreditar.
Por isso, mudam as agendas das suas vidas conforme a Susana necessita, reúnem-se às segundas-feiras à noite, pelo menos uma vez por mês, para definirem tarefas e organizarem o que há a organizar. "Estamos sempre em contacto permanentemente pelo telefone ou pelas redes sociais. Eu deixei de ter metade do tempo que tinha para as minhas coisas, mas, como costumamos dizer, é o nosso voluntariado", admite Goreti, que confessa ter deixado de fazer voluntariado na Comunidade Vida e Paz, para onde foi levada pela Susana, para se dedicar só à amiga. "O Paulo dizia-me que um dia queria fazer voluntariado. Foi agora", afirma Goreti.
Todos são amigos de Susana há muito tempo, uns foram chegando através dos outros e foram ficando, mas agora "estamos todos mais unidos, são as teias, as pontes que se constroem na vida", dizem-nos três mulheres, de 40 e poucos anos. Catarina e Goreti trabalham na área da indústria farmacêutica, Raquel, ou Racas, como lhe chamam, é bailarina, professora de sapateado. Catarina vai participar no espetáculo de domingo com um número de danças escocesas, hobby que não deixou. Raquel com um de sapateado, Pedro e Paulo, que têm uma empresa de produção de conteúdos e que são artistas, vão apresentar o espetáculo, cantar e atuar. "Todos os amigos vão fazer algo, cada um na sua área", explicam. Goreti participa hoje numa corrida solidária, na Areia Branca. "Tem sido incrível, as pessoas que se têm juntado a nós. Tenho um grupo de amigos que corre, que muitas vezes se juntou a mim em Paço de Arcos, e fomos até ao Egas Moniz. Agora, já foram de bicicleta até ao Hospital do Mar e a Fátima. Isto dá-nos força", dizem.
Quanto a perspetivas, sabem que, e como lhes tem dito o neurologista da Susana, "por mais que esteja a melhorar não podemos esquecer que as lesões são graves, profundas e muito extensas." Mas, reforçam, "acreditamos que ela pode evoluir ainda mais cognitivamente e a nível motor, como até fazer uma vida socialmente viável". Por isso, continuamos à procura de um sítio que possa recebê-la, cuidar dela e acarinhá-la nos cuidados de que precisa". Andam a contactar várias unidades e já perceberam que "no SNS não há resposta adequada para ela. Em Alcoitão, a sua entrada já foi recusada três vezes. Da última, disseram-nos que não valia a pena levá-la lá enquanto não interagisse: "Enquanto o cérebro da Susana não despertar e não acordar, ela não tem espaço aqui. Nós precisamos de doentes colaborantes e a Susana ainda não colabora." É um facto. "Ela ainda não colabora dessa forma", conta Catarina. Os custos são muito elevados no Hospital do Mar, mas "se a temos ali não é porque sejamos ricos. É porque ali há os cuidados de que ela precisa", justifica Goreti.
Susana trabalhava na área dos medicamentos. Foi assim que Catarina a conheceu, em 2005. "Eu era medical manager da Susana na Roche. Trabalhávamos um produto que dava mais três meses de sobrevivência a doentes com cancro da mama. Os médicos diziam-nos que era muito pouco - claramente desprezavam e minimizavam o que são três meses de vida adicionais, nós defendíamos que três meses podiam ser uma vida. E um dia a Susana diz-me: tenho uma ideia. Levou-me para uma sala, ligou as colunas extra de som ao computador e passou um vídeo. Era o da vida de Efémera, uma mosquinha que vive apenas 24 horas e tanta coisa que faz. Queria apresentar isto aos médicos para perceberem o que é uma vida, às vezes 24 horas. Ela era assim. Quando o acidente aconteceu, só pensava: a vida é efémera. E o meu lema passou a ser: viver a vida intensamente como se não houvesse amanhã", desabafa.
Às vezes perguntam-lhes: Como é que aguentam? E respondem: "Passámos a relativizar as coisas, a olhar para o lado positivo de tudo. Em relação à Susana, sabemos que ainda não está bem, que temos muito caminho a fazer para chegar a bom porto, mas vamos continuar a correr juntos", diz Goreti. Catarina concorda e reforça: "Habituamo-nos a olhar e a pensar que há mais para lá daquilo que realmente estamos a ver. A Susana continua a precisar de nós e temos de cá estar." Raquel diz que ainda hoje não consegue ver o vídeo em que a Susana participou e que era para assinalar os 18 anos do seu filho, mas que imensa coisa mudou em si. "A forma de me posicionar na vida. O primeiro baque que tive foi quando fui mãe, em que fiz uma análise da minha vida, o que era prioritário e o que não era. O segundo foi a Susana, o acidente. Nunca tinha vivido uma situação assim."
Mas "o que tem de duro toda esta situação também tem de belo", concluem. Porque de "forma massiva pessoas que não conheciam a Susana têm-se juntado a nós e empenham-se em ajudar." A todas agradecem, aos amigos, à empresa da Susana, à paróquia de Queijas, que pediu donativos, aos pais de uma das escolas onde uma das filhas andou, aos grupos solidários de corridas e de bicicletas... Amanhã é dia do espetáculo dos amigos de Susana, que "esperam que as pessoas compareçam. Se houver interajuda, é assim que se faz nas corridas, no montanhismo, espera-se uns pelos outros, não se deixa ninguém para trás, será mais fácil para todos."
(Publicado originalmente a 7 de julho de 2018)