Com Tóssan, no Algarve

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Se o faro de cão / está mesmo no cão / o cão tem faro. // Se o faro é do cão / o cão é de Faro / o faro é do cão. // Mas se fareja e cheira / é de Albufeira. // E se tem olho o cão / e ladra a ladrão / o cão é de Olhão. // Se curva e vira / é de Espinhaço de Cão / ou de Tavira / ou até de Portimão. // Mas se ferra o cão... / não é algarvio, não!" Em boa hora escolhi como leitura de um fim de semana algarvio bem passado O Homem Que só Queria Ser Tóssan, editado por João Paulo Cotrim, na Arranha-Céus, com o apoio do município de Loulé, que me foi oferecido pelo meu amigo Vítor Aleixo. São três volume imperdíveis, um sobre a obra gráfica e dois sobre a produção escrita - Lógica Zoológica. Frutos e Desfrutos. Animalia. Contos e Descontos e Versos Côncavos e com Versos.

Conheci Tóssan, António Fernando dos Santos, em Albufeira nos anos 1960 e sempre me deleitei com o traço fino e irónico dos seus desenhos e a personalidade das suas personagens. Nascido em Vila Real de Santo António, foi nos seus amigos de Coimbra, como António Almeida Santos (cujos contos de Rã no Pântano ilustrou), que encontrei inesquecíveis recordações. As caricaturas dos estudantes eram pagas a 30 escudos por unidade ou com latas de quilo de fiambre. E lembramos as caricaturas de José Régio, Teixeira de Pascoaes, Paulo Quintela, Lins do Rego, Alves Redol, Bertolt Brecht... Tivemos uma referência comum, o Dr. Joaquim Magalhães, com quem discreteava, caminhando na Rua de Santo António em Faro, quando ia entregar a crónica para o Diário de Notícias. A memória de António Aleixo e o humor de Tóssan eram temas de conversa - para além da invocação de Antero de Quental, de Eça e desse grupo heroico... Foram o professor do Liceu de Faro e o relojoeiro de Loulé José Rosa Madeira os primeiros a darem atenção ao poeta popular. O caso de António Aleixo impressionou desde cedo Tóssan. "O contacto diário com "o poeta-cauteleiro e antigo guardador de cabras" (...) no Sanatório dos Covões, a partir de junho de 1943, colocou-o perante a descoberta impactante de uma literatura oral com laivos filosóficos e políticos que a todos surpreendia pela acutilância e o alcance humanista", diz Vasco Rosa. O Auto do Curandeiro resultou do encontro de Tóssan com Aleixo. É de Tóssan o mais célebre retrato de Aleixo, de 1943, que Manuel Viegas Guerreiro popularizou junto dos estudantes dos liceus.

Houve um período em que teve uma função essencial nas relações culturais com o Brasil. O embaixador Alberto Costa e Silva não lhe poupa elogios sobre o tempo do presidente JK: "Tóssan, grande e gordo, tinha cabelos abundantes e negros que formavam tufos nos lados, usava uns óculos enormes, que aumentavam a vivacidade do olhar e o faziam parecer uma coruja de caricatura." No Palácio Foz deu vida após 1974 a um breviário da cultura democrática na editora Terra Livre e multiplicou ilustrações para as crianças e os jovens, colaborando, por exemplo, com Leonel Neves. Tóssan não se levava a sério: "Gordão, bonacheirão, / satisfeito, rezingão. / Carregado de pecados, / viajado, / arreliado, / maldisposto / malcriado..." O teatro apaixonou-o sempre, desde o Lethes e do TEUC. O desenho era o modo de pôr a gente em ação, daí o entusiasmo de crianças e adultos com as suas ilustrações. Mário Viegas levou à cena Totó com um conjunto extraordinário de textos de Tóssan. Teatro e vida confundiam-se. "O teatro diminui a luz como quem desce as pálpebras aos poucos (...). Uma mala de senhora atirou-se de um camarote para a plateia. Todos se levantam. Todos se sentam. Todos comentam. Um tosse; tossem todos. (...). Mas mal abriu a cortina, o público ficou natureza-morta - apenas se ouvem os olhos dos espectadores a devorarem a cena..."

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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