Com quem choras

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Na Síria não há uma coisa destas todos os dias. Há várias coisas destas todos os dias." Li isto no Twitter. Não me lembro quem disse: se um dos jornalistas que reportam sobre o pavor quotidiano no país de Assad, se um árabe ou cidadão do Médio Oriente. Surgiu quando, na ressaca do ataque de segunda, vários tuiteiros nacionais falavam perplexos da sua tão maior empatia face ao pavor causado por duas bombas deflagradas numa rua de Boston que ao de mil em Allepo.

"Racismo"?, perguntava um. Sê-lo-á decerto para alguns. Mas poucos países tão multirraciais como os EUA - e ainda não sabíamos de que cor eram os mortos e feridos e já estávamos em choque com o facto de terem morrido ali, naquele momento, naquela cidade, daquela forma. Já olhávamos em horror para o sangue no passeio onde explodiram as bombas antes de sabermos de quem era, e não faz nenhuma diferença agora que sabemos, nem faria se os três mortos fossem negros, de origem paquistanesa, mexicana, ou síria, em vez de uma chinesa e dois americanos "brancos". Talvez tenha então muito mais a ver com o onde que com o quem.

Fácil concluir isso se pensamos nos atentados terroristas que mais nos marcaram. Alguém se lembra de dois dos primeiros feitos da Al-Qaeda, em 1998, na Tanzânia e no Quénia? Tem a ver com a nacionalidade dos mortos, dir-se-á. Não: as bombas em Sharm el-Sheikh, a estância egípcia onde em 2005 morreram 88 pessoas, mais de 20 ocidentais, como as de Bali (2002, 202 mortos, dos quais 88 australianos, 27 britânicos, sete americanos e cinco suecos), quase nunca são referidas. O Egipto e a Indonésia não são "o nosso território". É nos lugares que sentimos "nossos" que esse tipo de acontecimento mais nos toca. E não tem sequer a ver com alguma vez termos lá estado, mas com vermo-los como o nosso perímetro de segurança - de paz. Onde baixamos a guarda e esperamos que toda a gente faça o mesmo, como se o que se passa nos outros sítios, nas casas dos outros, não pudesse jamais fazer sentido - ou ter eco - na nossa.

O último filme de Robert Redford, The company you keep/Diz-me com quem andas - traduzido como A Regra do Silêncio -, fala disto. Dos horrores que nos interpelam e dos que não; o que define a justeza e a aceitabilidade da luta; o que estamos dispostos a sacrificar e fazer por causas que consideramos justas. Não é um tema novo. Nem para o liberal Redford nem para a capital do estado mais liberal dos EUA, onde se iniciou a guerra da independência: o terrorista de uns é o combatente da liberdade, o justiceiro dos outros. As nossas crianças mortas e mutiladas, pelas quais juramos revirar cada pedra em busca dos culpados e de vingança, são sempre os danos colaterais aceitáveis, desejados até, de outros. E vice-versa. Diz-me por quem choras, com quem choras - dir-te-ei quem és. E talvez do que és capaz.

(Sim, pode ter sido da América, em nome da América, que isto veio - para parecer feito de fora. Precisamente.)

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