"Com o telemóvel o bullying persegue-nos no bolso de trás"

Numa passagem por Portugal, Yan England veio apresentar 1:54 no festival Queer. O ator e realizador canadiano, 38 anos, sublinha que o bullying não é a única temática da sua primeira longa-metragem, mas é um assunto que lhe diz muito. E desde a estreia têm sido muitas as histórias de jovens - e alguns adultos - vítimas de intimidação que lhe chegaram.
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Esteve em Portugal para apresentar o seu filme 1:54. Fala de muita coisa mas o bullying é um assunto central. É uma questão que o preocupa há muito tempo?

Sim. 1:54 não é apenas um filme sobre bullying porque se quisesse falar só disso tinha feito um documentário. Outra temática que me era cara quando decidi fazer o filme era a superação pessoal. Eu na vida sou um corredor. Cheguei a competir a nível nacional nos 800 metros, como a personagem principal do filme. Há algo de bom na competição, no ultrapassar os nossos limites, mas também há o reverso da medalha que é a rivalidade. Este era um lado que queria mostrar no filme. Eu sou ator desde os oito anos, entrei em séries e filmes, fiz programas ligados à juventude. De tal forma que, sobretudo, através das redes sociais, sou uma pessoa a quem os jovens fazem confidências. E o bullying é uma realidade com a qual me confrontei. Muitas vezes começa como uma piada. É na brincadeira - ou achamos que é. Mas rapidamente pode degenerar. Isto eram coisas sobre as quais queria falar, mas num contexto dramático. 1:54 baseia-se em histórias verdadeiras. Tudo o que acontece no filme é verdadeiro. Tudo. Até a cena em que a personagem principal, Tim, está a ler comentários na Net. Todos os comentários foram mesmo tirados da Internet. Só mudei os nomes. Queria entrar na pele daquela personagem e fazer um filme a partir do seu ponto de vista. É como Tim vive as coisas e as tenta resolver. É a história de um rapaz de 16 anos que é alvo de bullying, está farto de ser saco de pancada, quer impor-se. Tem talento para a corrida e tenta usá-la para se impor. A ideia nasceu dos comentários de jovens que me contactaram.

É mais uma realidade que chegou até si do que algo que viveu?

Também a vivi. No segundo ciclo mudei de escola e fui para uma que ficava longe, a 40 minutos de minha casa, porque tinha a opção de música que eu queria mesmo. Quando lá cheguei, já era ator, não conhecia ninguém, mas depressa começaram a picar-me, a chatear-me. E o que começou como quase nada foi crescendo. Até que em determinado momento senti a pressão e degenerou. O que me salvou de ser o saco de pancada foi quando começaram as atividades musicais e eu passei a não ter tempo para mais nada. Acabei por fazer amigos. Mas sim, vivi estas coisas.

Temos tendência para desvalorizar as questões do bullying, da depressão, do stress?

A intimidação não tem classes sociais. O bullying não conhece classes sociais. Podemos ser grandes, pequenos, loiros, morenos, não importa a nacionalidade, a língua, a cultura, podemos ser híper inteligentes e mesmo assim ser alvo de bullying. Podemos ser lindos e ser intimidados. Não há regras. A prova? Depois de uma projeção do filme um jovem veio ter comigo. Tinha 19 anos, dois metros, jogador de basquete, estrela da escola no secundário. Diz-me, "olha vou contar-te a minha história". OK. "Durante todo o secundário fui a estrela da escola no basquete. No ano passado cometi um erro, que nos fez perder o jogo. No final, alguns colegas de equipa começaram a picar-me". A coisa ganhou dimensão, espalhou-se à escola inteira e a pressão tornou-se tal que ele deixou a equipa, saiu da escola, pensou suicidar-se, ainda tentou, mas alguém o impediu. Quem diria? Um rapaz de dois metros! Mas não tem a ver com ser forte ou fraco, por vezes tornamo-nos no alvo e isso pode alastrar. Ainda mais porque hoje temos isto [pega no telemóvel que tinha ao lado]. A grande diferença em relação a há dez ou 15 anos é que antes tudo se passava na escola e quando acabava tínhamos uma pausa. Recomeçava no dia seguinte. Agora com o telemóvel a intimidação persegue-nos no bolso de trás. O bullying nunca se faz à vista de todos e existe em todo o lado. Um dia um liceu privado veio assistir à projeção do meu filme. No fim, um professor e um aluno que me dizem que na escola deles conseguiram erradicar a intimidação. Eu digo: Genial! Eles explicam que aquela é uma realidade que desconhecem, que se calhar existe mais em escolas desfavorecidas. Nessa altura uma rapariga levanta a mão e diz: "é só para dizer que tudo o que a personagem do Tim vive no filme eu vivo-o todos os dias, há quatro anos, e ando na vossa escola". Houve um silêncio de morte na sala. A irmã, que estava ao lado dela, começa a chorar, porque não sabia de nada. Esse é o problema do bullying: os pais, os professores muitas vezes não percebem o que está a acontecer. Não é a depressão, é algo que vai mais longe. Chega ao local de trabalho. Tive adultos que chegaram ao pé de mim para me dizer que viviam coisas semelhantes ao protagonista do filme.

Veja aqui o trailer do filme 1:54

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Falou nas Nações Unidas sobre Internet, recrutamento, etc. As autoridades deviam intervir mais nas redes sociais? Agora até por causa do terrorismo...

Falei no Quebeque numa conferência com pessoas de todo o mundo. Era sobre Internet, redes sociais, recrutamento. É engraçado porque um especialista explicava que o recrutamento não se faz na dark web, faz-se no Facebook. Se nos quisermos juntar a uma organização, podemos fazê-lo rapidamente. Se quisermos construir algo que cause muitos danos - como as bombas - basta uma busca nas redes sociais e na Internet. A Internet é o World Wide Web, está ali tudo. Nunca a vamos conseguir controlar. O que temos de fazer é trabalhar na prevenção. O problema hoje é que comunicamos através do telemóvel e não de humano para humano. Por isso é tão importante estabelecer uma relação de confiança entre os pais e os filhos adolescentes. Muitas vezes os pais, os adultos, não percebem como é fácil quebrar essa confiança. Vão intervir de acordo com a sua visão, a sua experiência. O que não é fácil como pai é que um jovem vem falar com um adulto uma vez. Uma só vez. Nesse momento não podemos na resposta. Se for a errada, ele vai fechar-se sobre si próprio. Mais tarde, a ONU decidiu fazer uma projeção especial de 1:54 no quartel-geral, em Nova Iorque. Foi incrível - que a ONU, o sítio onde se tomam as grandes decisões mundiais tenha decidido projetar o meu filme e abrir a discussão. O mais espantosos neste tempo é que comecei no Quebeque, era uma realidade de que as pessoas me falavam e que eu vivi. Mas o filme teve a sorte de viajar e seja em Inglaterra, no Japão, na Coreia, na Austrália, nos Estados Unidos, no Canadá, não importa... houve jovens que vieram ter comigo e tenho testemunhos do mundo todo. Jovens que viveram aquilo, que conhecem alguém que viveu aquilo. E apercebi-me que acontece em todo o lado. É universal. Infelizmente. E acaba sempre na lei do silêncio. Por isso temos de abrir o diálogo.

Tem viajado muito, sente que a imagem do Canadá melhorou nos últimos anos? Isso deve-se muito à popularidade do primeiro-ministro Justin Trudeau?

Exatamente. Eu não ligo muito à política, mas é certo que isso acontece. Até tive eu próprio um momento espantoso durante a projeção do filme na ONU. Vêm dizer-me que há várias pessoas que vão falar antes da projeção e que há umas palavrinhas do primeiro-ministro. E eu penso: "alguém vai ler um comentário. É simpático, vai ser divertido, deve ter sido o assessor, ... Então no fim alguém diz, "aqui ficam as palavras do nosso primeiro-ministro, Justin Trudeau". O senhor faz uma pausa e olha para o ecrã. De repente, na imagem surge Trudeau, que tinha visto o filme e que veio passar uma mensagem relacionada com o filme. Eu fiquei espantado. "Espera, o primeiro-ministro viu o meu filme?". Ele tem três filhos, se calhar quer preparar-se (ri-se). Mas que tenha visto o filme, que tenha tempo para falar disso na ONU e com uma mensagem inspiradora... espantoso! E, sim, é verdade, noto que o Canadá é falado um pouco por todo o lado. O Canadá como um verdadeiro lugar de igualdade, de paz. Seja a igualdade de sexos - achei lindo quando Trudeau disse que tinha o mesmo número de mulher e de homens no governo porque era 2015 -, igualdade religiosa, igualdade no casamento, casamento para pessoas do mesmo sexo, .... A todos os níveis. Há um entusiasmo, as pessoas estão à escuta. Esta mudança permitiu a muitos canadianos por todo o mundo abrir as asas e criar coisas. O que é interessante é que o objetivo é sempre em prol de causas sociais.

Na Europa fala-se muito do acolhimento aos refugiados...

Sim, exatamente. Houve um boom de chegadas no verão. E acho ótimo que avancemos, que olhemos para o futuro. E essa abertura ao mundo... somos sempre mais fortes unidos do que separados. É a vantagem do cinema. Andamos pelo mundo e falamos com pessoas, descobrimos as realidades locais. É essencial que os líderes dos vários países falem uns com os outros. Mesmo que uns defendam umas coisas e outros defendam outras.

Viveu nos EUA, o presidente Donald Trump não parece disposto a seguir o caminho de abertura de Trudeau?

Vivi cinco anos em Los Angeles e um em Nova Iorque. Vivi nas duas costas. É um país cheio de possibilidade e os americanos não são todos feitos à imagem de...[o seu presidente]. Como em qualquer país é interessante ver essa dicotomia. O importante é defender o diálogo. Caso contrário cada um fecha-se nas suas posições. Mas ainda bem que agora as pessoas têm uma bonita reação face ao Canadá.

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