"Com maior esperança de vida, estamos a pensar no envelhecimento dos infetados com VIH"

É o presidente da Abraço desde 2014, a iniciar segundo mandato. Nascido em 1982 em Cascais, o psicólogo clínico pôs de lado a antiga aspiração de trabalhar em contexto hospitalar e diz que a associação lhe trouxe uma nova reflexão em termos pessoais e profissionais. Agora que a medicação já pode reduzir a indetetável a carga viral, coloca-se o problema do envelhecimento, depois de tratamentos constantes.
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Comecemos por esclarecer mais uma vez esta questão: uma coisa é estar infetado com o VIH e outra é estar doente com Sida?

A sigla Sida pegou facilmente na população em geral e ficou com esta conotação. Em parte, nós, associações, também somos "culpadas" de as pessoas falarem muito sobre a questão da Sida e pouco sobre a questão do VIH. Em termos clínicos, é um estado mais avançado de debilitação do sistema imunológico, para os clínicos atuarem de uma forma um pouco diferente. Estar infetado pelo VIH é simplesmente ser portador do vírus que pode estar com carga viral indetetável, o que significa que a infecciosidade para outra pessoa, mesmo que tenha sexo desprotegido, é muito reduzida. Hoje, volvidos mais de 30 anos de existência da infeção, os medicamentos estão tão avançados que permitem a supressão do vírus para níveis muito reduzidos. E isso permite utilizar uma coisa de que já se fala há algum tempo: a própria medicação ser o veículo de prevenção.

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Está a falar do PReP?

Não estou a falar da PReP, a profilaxia pré-exposição, que é diferente de as pessoas infetadas fazerem medicação. A PReP é para pessoas saudáveis que não têm infeção pelo VIH, e espera-se que não tenham, para ficarem protegidas de eventuais parceiros sexuais que estejam infetados.

Tomada sistematicamente ou em situação de exposição ao risco?

Temos estudos que nos indicam tanto a toma intermitente como a toma contínua. Continuamos a apostar na toma com 48 horas de antecedência. Uma pessoa com atividade sexual regular sem utilização de preservativo deve usar este modo de prevenção de forma consistente.

Continua a ser perigoso ter sexo desprotegido?

É perigoso porque não é só a questão do VIH mas também as outras infeções sexualmente transmissíveis - sífilis, gonorreia, hepatites. Além disso, a toma de medicação diária não é desejável. Nenhum de nós pretende fazer para o resto da vida diariamente um tipo de medicação, seja ela qual for. Nesse sentido, continua a ser uma infeção difícil de manejar no dia-a-dia. E continuamos com uma conotação muito negativa relativamente ao VIH. As pessoas ainda têm reações emocionais como se fosse uma morte prematura, dolorosa, de uma forma muito intensa.

No 4.º Congresso de Medicina tropical foi divulgado que o VIH cresce ao ritmo de 5700 infeções por dia.

A nível mundial.

Este contínuo alastrar da infeção não é preocupante? Em Portugal há um crescimento comparável?

Quando vemos a epidemia do VIH a nível mundial, percebemos que há países que estão muito aquém do que é expectável. Preocupa-nos por duas razões. Há pessoas que migram para Portugal ou passam por cá e podem vir a contagiar outras pessoas. Também há estudos que mostram que as pessoas contraem o vírus no país para onde vão, não o trazem do país de origem. E temos muitos portugueses a visitar esses países. Em Portugal, desde 2008 assistimos a uma progressiva diminuição da taxa de incidência do vírus pela infeção pelo VIH, o que é bom, porque quer dizer que estamos constantemente a conseguir diminuir e a propagação fica também diminuída. Nunca tivemos números desta ordem. Portugal tem investido em políticas de saúde nesta área. A taxa de transmissão de mãe para filho é muito reduzida e habitualmente são grávidas não vigiadas no país de origem que têm o filho em Portugal. Continuamos com uma taxa de infeção alta na transmissão sexual. O grupo dos utilizadores de droga está controlado. Temos de continuar a apostar nas políticas de saúde na toxicodependência, porque estão a resultar nas infeções sexualmente transmissíveis.

Em termos etários, quais são as faixas mais afetadas?

Depende dos subgrupos. Para nós, em termos técnicos, é importante. Para a população em geral, nem tanto. Quem tem sexo desprotegido fica sujeito a contrair a infeção por VIH, não há como contornar isto. Do ponto de vista técnico, temos algumas subtilezas a atender: se são homens que têm sexo com homens, se são mulheres migrantes, se têm outra infeção sexualmente transmissível e isso os coloca mais vulneráveis à infeção por VIH, se têm uma situação social mais desfavorecida - como por exemplo os sem-abrigo. Tudo isto são fatores a ter em conta para intervirmos de uma forma mais personalizada.

Entre os jovens, há muitos casos de transmissão? Houve há anos um alerta para as pessoas mais idosas que não utilizavam meios de proteção.

Nós não vemos isto de forma tão isolada, quase binária, entre jovens e idosos, porque para nós a sexualidade é um continuum, também em termos de preferência sexual, porque há pessoas que são 100 por cento heterossexuais ou 100 por cento homossexuais e dentro disto temos uma variação tremenda de comportamentos sexuais. A sexualidade é vivida desde a infância até a idade mais avançada. Pessoas com 65 anos ou mais têm uma vida sexual tão ativa como pessoas de 30 anos. Os fatores não são lineares. Apercebemo-nos - e tem vindo a ser essa a nossa postura - de que não basta o conhecimento. É importante transmitirmos o conhecimento científico, sem dúvida, mas apesar de as pessoas saberem quais são e quais não são os meios de transmissão, e como se protegerem, isso só por si não faz com que as pessoas utilizem o preservativo.

Até porque se espalhou a ideia de que a doença pode tornar-se crónica.

Temos pessoas com essa noção, ou até solidárias no mau sentido.

Isso quer dizer o quê?

Temos relatos de pessoas que dizem que não há problema de ter sexo desprotegido porque são solidárias com esta causa e com esta luta.

Isso é uma inversão dos fatores.

E até dos valores, é retorcido, sem dúvida. Na sua génese, o sexo nunca foi uma coisa racional e nos tentámos racionalizar uma coisa que não é racional. Somos seres humanos, com emoções, com experiência tátil, e o sexo é exatamente isto. Se não trabalharmos isto antes, e às vezes até numa idade precoce - qual é a vivência saudável de uma sexualidade e a sua expressão saudável - vamos esbarrar sempre numa questão: enquanto continuar a ser tabu em Portugal, não vamos conseguir alterar os comportamentos sexuais.

Apesar de tudo, é diferente do que era há 30 anos. A Abraço tem muito contacto com jovens. O que aprendeu nesta experiência?

Posso falar de experiência própria e até na Abraço. Já fiz sessões de prevenção onde fui insultado por estar a falar sobre sexo - as pessoas não estavam recetivas.

Ainda, no século XXI?

Ainda agora. Já tive reações de jovens com muito receio e até nojo do preservativo. Para nós não é mau, porque já teve o primeiro contacto e quando utilizar já sabe para o que vai, não vai às escuras. Mas ainda existe isto. É preciso não desistir depois destas reações adversas. Já tivemos raparigas a dizer que isso é da responsabilidade do rapaz, "ele é que trata disto, não sou eu", como se elas não tivessem voz ativa na vida sexual delas. Do ponto de vista pessoal, vivemos numa sociedade judaico-cristã e a culpa está sempre associada a qualquer coisa que a gente faça e que considere que se desvia daquilo que são os nossos valores e o nosso padrão.

Os nossos valores ou os valores dominantes?

Ou impostos, sim, também. No âmbito da sexualidade tivemos muito isto: não se pode falar sobre determinadas coisas, as pessoas não podem masturbar-se e as mulheres terem vários parceiros, tudo isso era mal visto, não se falava sobre o assunto. Hoje há uma abertura para dialogar, o que não quer dizer que vamos banalizar, porque há uma parte do sexo que tem a ver com a nossa intimidade e assim deve ser. Pode haver um diálogo maduro e adulto sobre a questão, sem ridicularizar.

Disse que já foi insultado em sessões destas. Por jovens? Quem tem essa atitude mais tensa?

Não são jovens, são mesmo os professores. Nós temos um funcionário que percorre as escolas de Portugal continental há mais de 20 anos, o Sérgio Luís, e ele estabelece relações com os professores e as escolas. Com a introdução da educação sexual, muitos professores não se sentem à vontade para dar determinados conteúdos e nós asseguramos essa parte. Há os professores que nos convidam e depois há os outros que vão assistir, e alguns desses podem reagir desta forma. Por grande felicidade nossa, os outros professores olham para isto com desdém e até os repreendem.

E os alunos?

Habitualmente temos uma boa recetividade. Depende muito das idades. Há as reações do riso nervoso, das gargalhadas.

De "mandar umas bocas"...

Sim, e até entre eles para ficar mais animado. Mas temos de utilizar isso, trazer isso para a sessão e trabalhar em cima disto com eles. Para nós isso é o mais importante.

É importante continuar a fazer essas sessões, andar nesse esclarecimento constante?

É importante porque abordamos várias questões.

Há quem diga que já sabe tudo, às vezes por medo de falar.

Às vezes entramos nessa falácia de os adolescentes dizerem "eu sei tudo". Muitos tiveram várias experiências sexuais, sabem do que estão a falar. Nós tentamos sempre dar o aporte de construir em cima daquilo que já foi a vivência deles. Se têm essa experiência, ótimo, vamos trabalhar sobre isso. Como é que te sentiste nas relações sexuais, o que foi desconfortável ou não, o que achas que um rapaz deve fazer que alguns não fazem e tu até gostas? É trabalhar em cima das experiências e dar-lhes esse sentido de empoderamento: sim, tu sabes do que estás a falar e já tiveste essa experiência, anda lá utilizar isso para nós conseguirmos aqui construir algo em conjunto.

Mantendo sempre a questão da intimidade? Não é propriamente perguntar a uma rapariga o que queres que um rapaz te faça e ela responder em frente a uma turma inteira?

Não, apesar de haver raparigas que fazem isso. Nós promovemos um encontro na Fundação EDP com várias escolas e convidámos alunos para o palco, para partilharem connosco a experiência. Apesar de constrangimentos iniciais, tivemos raparigas a dar o relato da vida delas e a dizerem "já estive com este e este rapaz" e a serem bastante assertivas, para nossa surpresa, relativamente à exposição.

Mais do que os rapazes?

Mais do que os rapazes. Os rapazes têm aquela coisa de serem viris, muito masculinos.

Como é que os jovens veem a homossexualidade?

Estamos numa fase de transição. Assistimos a gerações que ainda viveram uma repressão muito grande por serem homossexuais e temos gerações atuais que lidam com isto de uma forma muito aberta e descontraída. Ainda assistimos a homens casados, com filhos, que têm relações extra-conjugais com outros homens porque foi a forma que encontraram de viver a sua homossexualidade. Temos depois uma fase de transição de gerações para quem é ainda um tema tabu - vivem nesta sombra mas não são casados, vivem até aos 30 ou 40 sem assumirem a homossexualidade. E depois temos a franja dos 20, 14 e até mais jovens que lidam com isto de uma forma muito natural, sabem e assumem que são homossexuais.

E isso não é estigmatizado pelos outros?

Depende.

Não se pode generalizar?

Infelizmente não. Acompanho um utente com quem os pais deixaram de falar há oito anos, cortaram por completo as relações com o filho. E temos situações em que as próprias mães incentivam: quando alguém pergunta "então, já tens namorada?", elas dizem: "ou namorado..." Estamos numa fase de transição, é o que sentimos. Ainda é uma coisa que não é bem vista ou é censurável para alguns, e para outras pessoas é banal ser homossexual ou heterossexual. E temos uma série de pessoas que não se quer encaixar numa nomenclatura nem noutra.

Como chegou à Abraço?

Tinha acabado o meu curso e fui contactado pela delegação do norte para ir a uma entrevista. Foi assim que entrei. Comecei no norte, no apoio domiciliário.

Como psicólogo clínico?

Sim. Fui entrevistado pela atual vice-presidente, a minha colega Cristina Sousa, numa entrevista de duas horas em que ela me massacrou, não foi simpática nessa altura. Mas criámos uma empatia muito natural um com o outro e uma amizade que perdura há dez anos. Comecei com situações muito complicadas, na época da crise económica de Portugal e da Europa. Visitei casas muito degradadas, com muita pobreza, situações muito complicadas do ponto de vista social. Isso marcou-me, sem dúvida. Perceber que a nossa atuação está limitada, enquanto recém-licenciados, custa muito admitir.

Uma pessoa acaba o curso e pensa: vou mudar o mundo?

Temos a utopia de que o que fazemos vai mudar muita coisa na vida daquela pessoa e às vezes não muda. A verdade é esta. Por diversos fatores. E isso é uma das coisas mais difíceis para nós lidarmos enquanto recém-licenciados: percebermos que somos humanos, que temos limites, que a nossa atuação está limitada e não conseguimos mudar assim tantas coisas.

Muitas vezes terá a sensação de que foi decisivo na vida de alguém? Decisivo como psicólogo e como presidente da Abraço?

Como pessoa, essencialmente. A retribuição que temos é no dia-a-dia e nos afetos que as pessoas nos dão. Porque é recíproco. Quando há utentes que chegam ao pé de mim e dizem que tinham saudades minhas, isso para mim é uma retribuição ótima. Quer dizer que eu sou importante na vida daquela pessoa.

E a Abraço, como está de saúde?

A Abraço neste momento é uma associação estável do ponto de vista financeiro, em grande parte pela solidariedade dos portugueses, principalmente nesta altura do IRS, o que para nós é ótimo e permite-nos consolidar. Comecei o meu segundo mandato na associação. O primeiro foi de consolidação financeira, infelizmente com cortes associados, restrições. Este segundo mandato vai ser de construção. Nos 25 anos da Abraço, temos dois novos projetos para lançar a nível nacional.

Quais são?

Um deles tem a ver com o diagnóstico precoce. Vamos alargar a possibilidade de as pessoas fazerem o teste do VIH quer estejam em Bragança, Chaves, Beja, nas regiões autónomas - tanto Madeira como Açores. Vamos massificar a proximidade do teste rápido ao VIH. E estamos a construir com o município de Alcácer do Sal uma unidade de cuidados continuados, porque as pessoas com VIH têm uma maior esperança de vida, tal e qual como todos nós, e a isso está associada uma série de complicações, como na população em geral, como doenças neurológicas, Alzheimer...

Será uma unidade específica para pessoas infetadas?

Não, mas é uma unidade que não discrimina em função do estatuto sorológico.

Porque em geral são discriminados?

Basta dizermos que ligamos da Abraço para nos fecharem algumas portas, infelizmente.

Esta seria a primeira que não discrimina, ou há outras que não o fazem?

Há algumas que não discriminam. De um modo geral, ainda há muitas que discriminam. Queremos criar uma unidade de cuidados continuados onde seja aceite qualquer pessoa que tenha qualquer tipo de patologia e tenha os fatores clínicos para entrar neste tipo de resposta.

Esses são os dois projetos principais da Abraço?

Sim, muito a pensar na questão do envelhecer e no desenvolvimento da pessoa infetada pelo VIH. O nosso objetivo é que tenham uma maior esperança de vida e com uma maior qualidade. É nisto que temos de apostar e temos de perceber quais são hoje os fatores críticos, porque a toma de medicação provoca alterações, inevitavelmente.

Isto é, tem efeitos secundários?

Sim, a longo prazo. Estamos a falar de uma medicação que é metabolizada, há uma função renal adjacente. Se estou constantemente a tomar medicação, a longo prazo...

Ainda não há experiência, é uma novidade. É preciso começar a pensar?

É preciso antever.

Quantos voluntários tem a Abraço?

Temos permanentemente, distribuidos pelas diferentes delegações, cerca de 80. Só médicos dentistas são quase 50. Temos um projeto baseado quase na totalidade em voluntariado, o nosso gabinete médico-dentário. Felizmente, a comunidade de médicos dentistas teve uma adesão ótima a este projeto.

Por que sentiram necessidade de criar uma unidade própria? É difícil arranjar um dentista que aceite?

Exatamente.

Mas têm estes voluntários.

Isso permitiu-nos educar esta classe profissional para levar isto para os gabinetes privados onde exercem a sua prática. Eles também são disseminadores da não discriminação em função do estatuto sorológico.

É um aspeto do voluntariado e do trabalho da Abraço que funciona em mancha, não fica só ali no gabinete.

É quase pulvónico, os tentáculos vão-se ramificando e, como eles são de várias regiões de Portugal - não são só de Lisboa embora o gabinete seja em Lisboa - isso permite-nos, se temos pessoas dessas áreas, encaminhar para estes consultórios para serem atendidas nesta proximidade.

Têm quantas delegações?

Temos quatro delegações. No Porto estamos distribuídos entre Vila Nova de Gaia e Porto, e depois temos Lisboa, Região Autónoma da Madeira e Setúbal.

E quantos associados têm?

Nos não consideramos o utente como associados. Em termos de utentes, estamos a falar de um universo de cerca de 500 pessoas, em termos de associados cerca de 400.

Os utentes aumentam porque a esperança de vida é maior?

Nós só consideramos utente quando estamos efetivamente a fazer alguma coisa com esta pessoa, do ponto de vista social, psicológico, médico, seja o que for. Se vem só para uma sessão de esclarecimento ou porque tratámos de desbloquear alguma situação a nível hospitalar, não é nosso utente.

Esses são a maioria?

Sim. Por exemplo, agora temos alunos que vêm fazer Erasmus, estão infetados pelo VIH e precisam de algum tipo de orientação. Nós enviamos medicação para fora e para Portugal.

A sua vida como psicólogo clínico é mais completa por estar na Abraço?

Sem dúvida. É mais completa porque tem uma riqueza de histórias e de vivências que me permitiram refletir tanto em termos profissionais como a nível pessoal.

Não era isso que tinha pensado, imagino, quando foi estudar Psicologia?

Não. Eu fui estagiar para o Hospital de Santa Maria, queria trabalhar em contexto hospitalar. Hoje nem pensar. Nem estive em contacto, ao longo da minha licenciatura, com a questão da infeção pelo VIH.

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