O DN com Lula em São Paulo. "Tenho de viver até aos 120 para cumprir todas as penas"

Antigo presidente, que gera <em>merchandising</em> próprio como uma estrela pop e inspira cânticos iguais aos de clubes de futebol, leva ao delírio plateia de futuros advogados na apresentação de livro sobre <em>lawfare,</em> a forma jurídica da guerra. Ex-primeiro-ministro português José Sócrates foi uma das estrelas do evento.
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Três horas antes da apresentação do livro Lawfare: UmaIntrodução, no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Cauê já tinha a sua montra impecavelmente montada. "Estou habituado, fui a um evento no Rio de Janeiro, alguns em São Bernardo do Campo, até fui ao Nordeste, trabalhei também na greve dos professores e cansei de ir a Curitiba."

Ou seja, Cauê, designer e vendedor em simultâneo, anda por onde estiver Lula da Silva, o político que é um fenómeno popular em todos os sentidos, até no mais abreviado da palavra: desde a detenção em Curitiba por 580 dias é um fenómeno pop.

"A foto dele, de barba, a discursar, ainda como sindicalista, é talvez a mais emblemática, está a tornar-se tipo aquela do Che Guevara aqui no Brasil e não só mas a camiseta que vendia mais nem era essa, era outra, que agora está em queda comercial", lamenta-se Cauê. "É a que diz Lula Livre!"

Ou seja, a liberdade de Lula foi má para o negócio? Em parte, responde o artista e comerciante que, para fazer frente ao problema, diz ter inventado soluções, como uma outra t-shirt em que a uma foto de Lula dos anos 1980 com a mão dentro das calças foi acrescentada a legenda "vou-te mostrar o tríplex".

"Tem sido um sucesso desde a liberdade dele, quer comprar?" Cada uma custa 35 reais [um pouco menos de oito euros].

Os pins, ao lado, com o rosto do líder, o símbolo do PT ou referências a causas simpáticas à esquerda, como a defesa dos índios ou da comunidade LGBT, custam cinco reais - três são 10, sete são 20, informa um colega de Cauê.

À frente deles, outro comerciante, aproveita para esgotar a edição do jornal Causa Operária, cuja manchete é "Contra os Golpistas, a Ditadura e o Fascismo".

Cauê, mesmo se sentindo mais comerciante do que artista, garante que "jamais criaria uma camiseta do Bolsonaro". "Ou do Corinthians, o clube do Lula, porque eu sou Palmeiras".

Mesmo assim, fez uma concessão ao craque Sócrates, glória futebolística do Corinthians mas também símbolo da esquerda brasileira. "Agora falta uma caneca do outro Sócrates, o português que vem cá, né?", brinca Cauê.

De facto, José Sócrates era a segunda principal atração da apresentação de Lawfare: Uma Introdução, livro escrito a seis mãos por Cristiano Zanin e Valeska Martins, advogados de Lula, e por Rafael Valim, jurista amigo de Sócrates, que fez questão de o convidar.

A terceira estrela da noite, Dilma Rousseff, acabou por se ausentar e ser duplamente substituída por ministros carismáticos dos governos de Lula, o dos Negócios Estrangeiros, Celso Amorim, muito aplaudido, e o da Educação, o ainda mais aplaudido candidato derrotado nas eleições de 2018 Fernando Haddad.

Enquanto os futuros advogados iam ocupando a plateia e o mezanino do salão nobre com cartazes alusivos a Lula, aguardando a chegada do fenómeno pop, entrava na sala José Genoíno, antigo presidente do PT e detido no Mensalão. "Não, não quero, quero estar no meio do povo", disse a um funcionário que o tentava colocar num lugar VIP.

Veio depois Juca Kfouri, lenda do jornalismo desportivo brasileiro com incursões no comentário político desde o impeachment de Dilma. "Ontem estive no relançamento do livro do Lula "A Verdade Vencerá", se bem que o título esteja desatualizado porque, desde as revelações do The Intercept [conhecidas como "Vaza Jato"], a verdade já venceu, resta-nos agora juntar os cacos para as eleições de 2020 e 2022", afirmou.

Chegaria em seguida Mariz de Oliveira, o advogado de nada menos do que Michel Temer, o presidente que todos os militantes do PT aprenderam a odiar a partir do impeachment.

Aplausos, flashes e lágrimas para a estrela Lula

Com a sala já cheia entrou então, como um jogador idolatrado num campo de futebol ou um astro da música no palco do show - Luiz Inácio Lula da Silva. Imediatamente, por entre chuvas de aplausos, de flashes e até de lágrimas dos mais emocionáveis, a torcida fez-se ouvir, ensurdecedora, com o já tradicional "Lula guerreiro, do povo brasileiro" e com o mais moderno "Lula na veia, Moro na cadeia".

Pelas contas informais da reportagem, aliás, Sergio Moro, o juiz que condenou Lula em primeira instância por causa do "Caso Tríplex" e é hoje ministro da justiça e da segurança, foi citado 39 vezes durante as duas horas de apresentação do livro. Já o chefe do seu governo, o presidente da República Jair Bolsonaro, não foi nomeado uma sequer.

Não é surpreendente se pensarmos que o tema do livro apresentado, o "lawfare", isto é, fazer a guerra por meios jurídicos, era mais da seara do ex-juiz do que do ex-capitão. Mas numa leitura livre, pode concluir-se que é Moro, considerado "ótimo ou bom" por 53% dos inquiridos na sondagem Datafolha do início da semana, e não Bolsonaro, aprovado por apenas 30%, o principal adversário de Lula também no campo estritamente político.

"Por ter mentido uma vez, você foi obrigado a mentir muitas mais para manter a primeira mentira: Moro, peça desculpa!", uma das frases com que Lula terminaria o seu improvisado discurso - na 39.ª citação da noite ao jurista - é disso sintoma.

Muito antes, falou o anglo-australiano Geoffrey Robertson, advogado internacional do antigo sindicalista, que tinha de apanhar um voo para Londres a tempo de votar na eleições do Reino Unido, lembrando que os casos mais antigos de lawfare remontam ao ataque de juízes aos primeiros sindicatos, em 1840.

Depois, Celso Amorim, chefe da diplomacia na maior parte dos governos do PT, disse que os pilares daquele executivo - "justiça social e afirmação da soberania nacional" - preocuparam a América do Norte. "Sobretudo uma capa da [revista britânica] The Economist em que o mapa do continente estava invertido e se lia "a América Latina já não é mais o quintal de ninguém"".

"Naquelas reuniões entre a NSA, a CIA e as grandes corporações, decidiu-se que não, que a América Latina teria de voltar a ser o quintal dos Estados Unidos", especulou. "Mas como já não dá para invadir os países com marines, invade-se com recurso ao lawfare."

"Porque não é o Moro o estratega do caso Lula, não é", diria instantes depois Valeska Martins, umas das autoras da obra apresentada.

Para ela, "no uso da lei como arma, não importa ideologia, não importa se o alvo é político ou empresário"

"O fenómeno já foi praticado contra líderes de direita, atinge a todos, basta mudarem os ventos", acrescentou Rafael Valim, outro dos autores. "No entanto, o direito como substituto de armas convencionais foi perfeitamente adaptado aqui no Brasil ao lamentável caso Lula."

"O que se pretende com o livro é criar uma introdução teórica ao tema", disse, finalmente, o outro escritor, Cristiano Zanin. "A guerra convencional escolhe o local de batalha, já o lawfare, mais subtil, escolhe a jurisdição apropriada, no fundo, usa estratégia do direito para fins políticos, geopolíticos, militares, comerciais."

Sócrates "orgulhoso de estar do lado de um partido com todos unidos"

A segunda maior atração da noite, Sócrates, falaria a seguir. Começou por manifestar "profunda admiração por Lula" e recordar "aquela noite eleitoral de 2018". "Na qual, mesmo havendo um vencedor [Sócrates também não citou o nome de Bolsonaro], eu só tinha olhos para os derrotados", disse.

"Que luta, que luta tão desigual, mas mesmo assim 47 milhões de votos para o PT, nunca me senti tão orgulhoso de estar do lado dos derrotados, do lado de um partido com todos unidos", disse, no que pode ser interpretado nas entrelinhas como comparação com a situação vivida no PS durante a sua prisão.

Sobre o tema do debate, para o ex-primeiro ministro "no lawfare há um elemento determinante, a aliança entre o submundo do jornalismo e o submundo da justiça, através do que vocês brasileiros chamam de vazamento, de fuga de informação". "É um poder clandestino, que fere de longe, que não dá a cara."

Mas, para o ex-primeiro-ministro, "a maior vítima é o juiz". "Porque nós obedecemos a um juiz não por sabermos que ele estudou para estar ali ou por que ele prestou um concurso mas por acreditarmos que ele é isento, que ele é um árbitro."

O lawfare, segundo Sócrates, "não visa apenas conquistar território, uma vantagem negocial, não: busca a destruição do inimigo político e com base em ideologias cheias de certezas e com base no ódio".

"Li em francês um livro Eglise, Charisme, Pouvoir

de um autor, francês portanto, chamado Leonardo Boff", contou, a seguir, arrancando gargalhadas da plateia. "Pois é, ao contrário de vocês, eu não sabia que o Boff era um teólogo brasileiro e andei ali a ler em francês quando podia ter lido no original na nossa língua".

"Mas sabem como eu descobri que ele era brasileiro?", prosseguiu, voltando ao discurso sobre o ódio, "descobri quando o vi, com as suas barbas brancas, sentado num banco de jardim em Curitiba, impedido de visitar Lula na prisão, por ordem de uma juíza [Carolina Lebbos]". "Até fui pesquisar a cara dela na internet e perguntei-me: como uma pessoa tão jovem pode ter tanto ódio no coração?".

"A resposta é: incapacidade de lidar com a ideia da igualdade", rematou deixando a plateia eufórica, em ponto de rebuçado para o discurso de Lula.

Lula com vontade de "combater o fascismo neste país"

"É ódio sim, amigo Sócrates, é ódio de classe", começou por dizer o antigo sindicalista, virando-se para o português e debaixo de ovação estrondosa.

"Tem gente que não quer o pobre a comer três vezes ao dia, a empregada doméstica a usar o perfume da patroa, o jardineiro a comprar um carro em primeira mão. Para eles, lugar de pobre é na senzala, não na casa grande", gritou, com a voz ainda mais rouca do que o habitual, e sob a comoção de dona Arlete, uma fã, negra, do antigo presidente, que percorreu "100 km para o ouvir".

"Li que um menino apanhou cinco anos de cadeia porque roubou um celular e um boné", disse Lula. "Quando eu era garoto, eu tinha de fumar porque para arrumar namorada só fumando cigarro Hollywood, depois na geração dos meus filhos era ter um ténis bom, hoje em dia para arrumar namorada só com celular, é isso que leva a pessoa a fazer isso."

"Cinco anos? Eu entendo o pai da menina assaltada que o quisesse ver preso, se calhar, até morto, ao ver a filha assustada, aflita, mas o Estado não pode fazer disso lei, não pode ser pessoal", notou.

"O que está faltando a este povo neste momento sabem o que é? É indignação. Mas eu estou com muita vontade de combater o fascismo neste país, quando digo que tenho 74 anos de idade, energia de 30 e tesão de 20 é verdade, quem nasceu em Garanhuns e não morreu até aos cinco anos tem vida longa", continuou.

"Aliás, com 74 anos, vou ter de viver até aos 120 para cumprir a pena que eles querem que eu cumpra. E se morrer, não vão deixar-me enterrar, não vão deixar ser cremado. Mas sim vou viver até aos 120, dizem os cientistas que o homem que viverá até aos 120 já nasceu, então porque não eu?".

Aproveitando a gargalhada, colou uma piada na outra. "Por falar em cientistas, o guru do presidente [referência ao filósofo Olavo de Carvalho] diz que a terra é plana mas logo desse presidente que tem um ministro astronauta [Marcos Pontes, titular da pasta da Ciência], não dá para o astronauta contar ao guru que ela é redonda?", perguntou, sem citar Bolsonaro.

Já sem voz, pôs fim à cerimónia: "Disse que não ia falar quase nada mas falei para cacete como sempre, abraço a todos". E o povo desmobilizou ao som de "Lula na veia, Moro na cadeia".

Enquanto arrumava os seus artigos, Cauê, que vendeu "como nunca", não quis sair do salão nobre sem apertar a mão a Sócrates. "Esse tal primeiro-ministro português falou bonito pra caramba!"

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